Fonte: http://www.sedufsm.org.br |
Para todas e todos que desejam aprofundar o debate acerca da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH e outras formas de terceirização e privatização dos serviços públicos, em especial da Saúde, recomendamos muito a leitura deste artigo.
O texto é da companheira Raquel Moysés, de Santa Catarina.
O texto é um pouco extenso, mas para ter o resultado que nos apresenta - um texto completo, com argumentação muito bem construída e apoiado em declarações de muitos estudiosos do tema - o preço foi o de ser um pouco longo. Será fácil para qualquer um que ler o texto, verificar que foi construído com bastante esforço e cuidado.
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Segue o artigo:
Empresa para privatizar e tirar os Hospitais Universitários - HUs dos pobres
Por Raquel Moysés – jornalista da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
São dias de prova para a resistência dos movimentos defensores da saúde pública no Brasil. Um circo armado pela mídia de mercado, e se supõe muito bem pago, mostra quase todo dia os “horrores” do sistema público de saúde no país. A rede de televisão mais poderosa do país desencadeou, há meses, uma pesada campanha, a pretexto de reportagem, para desmoralizar, diante da opinião pública, o Sistema Único de Saúde, o SUS. Nos últimos dias seus canhões estão apontados para os Hospitais Universitários (HUs), a maior rede de hospitais do SUS, com 46 hospitais-escola em todo o Brasil, totalizando 10% dos leitos que atendem 12% das internações no sistema. Ao mesmo tempo em que detona os HUs, vende as “maravilhas” da nova poção mágica representada pela empresa de direito privado - a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) - criada pelo governo federal, pela força da lei 12.550/2011, para entregar os HUs das universidades federais para os interesses de lucro de grupos particulares.
A tentativa de grupos empresariais ligados ao setor da saúde de se apropriar dos HUs e outros hospitais que ainda fazem parte do sistema 100% SUS não é de hoje. A armação vem se construindo, ao longo dos anos, inspirada na idéia do Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital. Trata-se de uma rede bem tramada de legislações que permitem, de modo “legal”, a usurpação do sistema público para o interesse de grupos privados, que se apropriam dos fundos públicos, permanentemente renovados através dos impostos pagos pela população.
Os laços desta rede de privatização se constrói a partir de leis, medidas provisórias e outros mecanismos oficiais, mas nunca aparecem de forma transparente. Tudo fica disfarçado através de nomes simpáticos e siglas, que vão substituindo os nomes dos projetos e que escondem os conceitos que os estruturam. As novas formas de privatização respondem por nomes como Parcerias Público-Privadas (PPPs), Organizações Sociais (OSs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips) e Fundação Estatal de Direito Privado (PL-92/2007).
As armadilhas montadas através de leis como a da Ebserh e das Organizações Sociais (OSs) são difíceis de serem desarmadas, mesmo quando elas desrespeitam a Constituição e afrontam a Justiça. Em Santa Catarina, como denuncia o Fórum Catarinense em Defesa do SUS e contra a Privatização, além do risco iminente que pesa sobre o HU da Universidade Federal de Santa Catarina, o governo estadual continua a entregar os serviços públicos de saúde para as tais OSs, colocando à disposição dessas organizações de direito privado seus servidores através do mecanismo da cedência.
O governo estadual desrespeita até uma decisão judicial do Ministério Público do Trabalho transitada em julgado que proíbe a transferência dos hospitais estaduais para Organizações Sociais, e continua a escalada de privatização em Santa Catarina. Já foram entregues para essas organizações privadas o Centro de Pesquisas Oncológicas (Cepon), o Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc), o Hospital de Araranguá e parte do Regional de Joinville. Também passaram para administração de OSs, o Hospital Infantil de Joinville e o Hospital de São Miguel do Oeste, quando estavam apenas recém-construídos, ainda cheirando a tinta e equipados, conforme denuncia o SindSaúde-SC.
Não escapou à política de entrega do patrimônio público nem o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU-192. Igualmente seguem na mira desse tipo de privatização o Hospital Florianópolis, o Hospital de Ibirama e a parte do Regional de Joinville que ainda resta pública. O governo de Santa Catarina ignora a Justiça e insiste em desrespeitar a decisão transitada em julgado na Ação Civil Pública (ACPTU5772-2005-034-12-00-2), que o condena a multa diária de R$5 mil se admitir trabalhadores por meio de convênios ou contratos com entidades privadas a exemplo das OSs e também se efetuar contratos de gestão que representem terceirização dos serviços públicos de saúde.
Combater este mal obscuro, desconhecido pela maioria da população, é um “trabalho para gigantes”, afirma Edileuza Fortuna, uma das diretoras do SindSaúde-SC. O sindicato faz parte dos movimentos que lutam, há vários anos, contra as Organizações Sociais e outras formas mascaradas de entrega do patrimônio público ao privado, como acontece agora com o modelo criado pelo governo federal para “gerenciar” os HUs: a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh).
É necessária uma luta gigantesca contra mais este entulho autoritário e antissocial, por causa do risco de que haja adesão acrítica a essa propostas nos Conselhos superiores das universidades federais. A luta contra a Ebserh é um dos principais pontos de pauta dos trabalhadores técnico-administrativos das universidades, em greve desde 11 de junho. Mas as forças contrárias ao sistema público são poderosas, pois contam com grandes lobbies de grupos interessados em lucrar com o “mercado” da doença, respaldados por leis impostas pelos governos, além da pressão da mídia, que vende a ideia da falência e da incompetência de tudo que é público.
Nomes bonitos para o mal
O mal é difícil de atacar, pois essas organizações levam nomes bonitos, enganadores para os que desconhecem os textos das leis que as criaram. Quem poderia suspeitar, sem conhecer as leis, que a Ebserh e as Organizações Sociais (OSs) são verdadeiras armadilhas para capturar as verbas públicas do Estado brasileiro, alimentadas pelos impostos que pagamos todos os dias?
Sara Granemann, professora, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica como os governos colocam em prática a privatização de um modo difícil de ser entendido pela maioria da população. “É que não se trata de uma privatização explícita. Não é a venda direta na bolsa de valores, mas um mecanismo de privatização mais sofisticado utilizado nesta era dos monopólios.”
O mecanismo de privatização da Ebserh, escondido sob uma capa de legalidade, é considerado inconstitucional por muitos juristas e procuradores. É o mesmo que inspira governos de vários matizes políticos a expandir as Parcerias Público-Privadas (PPPs), as Organizações Sociais (OSs) as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), as Fundações Estatais de Direito Privado, todos mecanismos legais que ocultam a essência da privatização. E a teia dessa rede de privatização de fios sutis, quase imperceptíveis, aos poucos enreda desavisados e envolve muitos na trama do engano.
Sara Granemann, que desvenda essa trama de enganos com muito trabalho e pesquisa, explica que as políticas de privatização levadas adiante pelos governos são elementos centrais para os capitais encontrarem novos espaços de expansão de negócios e reequilíbrio de sua taxa de lucros. E o Estado, conforme ela esclarece, é um campo fertilíssimo de novos negócios. No Brasil, primeiramente se privatizou o parque produtivo estatal. Na década de 90, nos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, houve a entrega vergonhosa, a preços escandalosamente baixos, de florescentes empresas estatais como a Usiminas e a Vale do Rio Doce. Depois foi a vez da infraestrutura, com a entrega de estradas, energia, telefonia, água e instituições bancárias, com numerosos bancos estatais privatizados e milhares de demissões de trabalhadores, provocando uma onda de suicídios entre os bancários.
Agora, através desses novos instrumentos “legais”, o sistema privado passa a abocanhar os fundos públicos representados pelo conjunto dos recursos que o Estado arrecada, um montante gigantesco de dinheiro renovado permanentemente, pois todo dia é cobrado imposto da população. E os lobbies atuam o tempo todo para encontrar formas eficazes de drenar esses recursos públicos que alavancam seus negócios privados.
Sara Granemann, em um congresso da Fiocruz – Fundação Oswlado Cruz, esclareceu que a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares deve atuar no mesmo formato de uma empresa como a Petrobrás, que tem sérios problemas de precarização de trabalhadores. “A Petrobras, para o público em geral, é um sucesso, uma empresa lucrativa. Mas trata-se de uma lucratividade que não é inteiramente do Estado. Essa situação, numa área como a saúde, pode ser uma catástrofe, pois a medida é uma enorme oportunidade de expansão dos lucros privados. E isso coloca em risco os hospitais universitários que são a parte mais desenvolvida do conjunto da saúde pública, em termos de inteligência da área da saúde pública, de pesquisas, de qualificação de profissionais."
De acordo com dados do MEC, de um total de mais de 70 mil trabalhadores dos hospitais universitários federais, mais de 26 mil são terceirizados. Muitos contratos são irregulares e, por isso, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou em 2006 que o governo teria até quatro anos para resolver o problema. A “solução” encontrada foi criar a Ebserh, já ultrapassado o prazo dado pelo TCU. "O formato de empresa pública possibilitará a contratação, via concurso, de profissionais sob regime celetista e o estabelecimento de um regime de remuneração e de gestão de pessoal compatível com a realidade do setor. Esta é, inclusive, uma componente fundamental do projeto para permitir a gestão com a autonomia e flexibilidade necessárias à prestação de serviços hospitalares", assegurava o governo federal na justificativa do projeto encaminhado ao Congresso.
Para Sara Granemann, a única solução aceitável para resolver o problema dos hospitais universitários é a realização de concursos públicos. Ela explica que a saída apontada através desta empresa de direito privado explicita a natureza do Estado brasileiro. “É o fundo público a serviço do capital e não das classes trabalhadoras de todo o país. É o Estado máximo para o capital e mínimo para o trabalho.”
Juliana Fiuza Cislaghi, assistente social e técnica de estudos orçamentários da Associação dos Docentes da UFRJ, em artigo no qual analisa o futuro incerto dos HUS, explica que a lógica que sustenta a proposta da Ebserh é inspirada na reforma do Estado “bresseriana” (do ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, do governo de FHC), a qual defende que serviços não-exclusivos do Estado só sejam regulados nos seus resultados, deixando sua execução para entidades privadas prestadoras de serviços através de contratos de gestão.
O argumento ideológico que sustenta essas propostas é a ideia do mercado, explica Juliana Cislaghi. “Isso significa o gerenciamento empresarial da instituição, através da captação de recursos de outras fontes e parcerias com empresas privadas. E essa falsa ‘autonomia’ vem acompanhada pela flexibilização de contratos e direitos trabalhistas, fim de licitações e prestações de contas, flexibilização de currículos na formação dos profissionais de acordo com os interesses do mercado, fim da pesquisa pública.”
O Fórum Catarinense em Defesa do SUS e contra a Privatização, que faz parte da Frente Nacional Contra Privatização da Saúde, realizou no Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina um seminário marcado por posições firmes dos dois convidados, que apresentaram os motivos para a UFSC não aderir ao novo modelo de privatização da saúde, disfarçado na sigla Ebserh.
O seminário faz parte de várias ações que o fórum de luta pela saúde pública está promovendo para informar a população e buscar impedir que os serviços públicos sejam retirados dos mais pobres, através da privatização mascarada de “ações sociais” e “interesse público”, como as promovidas pelo governo catarinense. No seminário, foram debatedores o médico João Pedro Carreirão Neto, chefe do serviço de auditoria do Núcleo Estadual do Ministério da Saúde em Santa Catarina e o procurador da República André Stefani Bertuol.
Ambos disseram que um dos grandes problemas a serem combatidos é a desinformação que reina nos meios sociais e nos ambientes das universidades e dos HUs, entre os trabalhadores, os estudantes, até entre os próprios dirigentes e alguns representantes dos conselhos universitários. Pois é a desinformação de uma parte e as más intenções de outra, que alimentam a expansão desenfreada de PPPs, OSs, Oscips e, agora, a criação da Ebserh, colocando em risco o atendimento da população pelo SUS e ameaçando outros setores do serviço público.
O seminário, além de muito esclarecedor, rendeu pelo menos um bom fruto: o compromisso da nova reitoria da UFSC, empossada no mês de maio, de que nenhuma decisão sobre a adesão à Ebserh vai ser tomada pela administração durante as férias acadêmicas e sem que haja um amplo debate com a comunidade. A vice-reitora Lúcia Helena Martins Pacheco, presente no debate, assegurou que ela e a reitora Roselane Neckel estão certas de que “a melhor forma de construir alternativas para os problemas da universidade é debater e ouvir a todos”.
Presente amargo
Como já é prática do poder, a lei 12.550, que criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) foi sancionada no apagar das luzes de 2011, às vésperas do Natal, destinando à sociedade brasileira um presente amargo, e que pode não ficar restrito apenas ao âmbito desta lei federal. No artigo 17 da lei está previsto que “os Estados poderão autorizar a criação de empresas públicas de serviços hospitalares”, como se já não bastasse o dano causado pela larga atuação das (OSs) e das OSCIPs, braços privados que se enraízam no sistema público causando estragos à saúde pública em vários Estados brasileiros.
Nem é preciso fazer grande esforço de interpretação para chegar a conclusões sobre os efeitos nocivos da Ebserh. Basta ler o primeiro artigo da lei para entender a que veio: é uma empresa jurídica de direito privado. Mas é a leitura do texto completo que não deixa margem a dúvidas. A lei 12.550 esfacela os mecanismos de controle social próprios do SUS; estabelece um novo tipo de regime de trabalho nos HUs, o celetista, próprio das empresas privadas, que não garante estabilidade no trabalho; dispensa licitações. A empresa também fica autorizada a contratar trabalhadores, através de processo seletivo simplificado, por um prazo de até cinco anos, além de poder patrocinar empresa fechada de previdência privada.
Os trabalhadores dos HUs, do quadro público atual, ficam sujeitos a serem cedidos para a nova empresa, com ônus para as universidades que os cederem, as quais também terão que repassar a tal empresa os seus recursos já previstos no orçamento da União, bem como seu patrimônio de imóveis e de equipamentos. Um dos detalhes mais escandalosos da lei está inscrito no oitavo artigo, que estabelece de onde virá o capital da empresa e como ela deverá utilizar o “lucro líquido” proveniente de várias operações, inclusive “das aplicações financeiras que realizar”.
O médico João Pedro Carreirão Neto, auditor do SUS em Santa Catarina, afirma que a lei reduz drasticamente o controle social sobre os serviços de saúde nos HUs. Ele explica que a empresa foi criada a pretexto de resolver o problema das fundações que atuam de forma irregular dentro desses hospitais. Só que ela tem fins lucrativos, e certamente tais lucros serão obtidos à custa de prejuízos para os usuários do SUS e dos trabalhadores dos hospitais. Prejuízos trabalhistas e de organização para lutar por direitos, pois a Ebserh instaura dois regimes de trabalho, separando os novos celetistas e os servidores que serão cedidos à empresa.
Carreirão adverte que tanto a lei como o estatuto da empresa (este último instituído através do decreto 7.661, de 28 de dezembro de 2011) estabelecem graves restrições à participação dos usuários e também dos trabalhadores nas instâncias de decisão. Dos nove integrantes do Conselho de Administração da nova empresa, sete são indicados pelo governo, sendo tolerado apenas um representante dos trabalhadores ativos. Só que a presença deste único representante será vedada quando a pauta das reuniões for tratar de “discussões e deliberações sobre assuntos que envolvem relações sindicais, remuneração, benefícios e vantagens, inclusive assistenciais ou de previdência complementar”, impõe o Estatuto da Ebserh.
A justificativa para este impedimento em relação à presença dos trabalhadores nessas reuniões é relacionada ao “conflito de interesses”. Este problema, porém, não é considerado para os graves conflitos de interesses existentes entre o sistema público de saúde e uma empresa que visa lucro e está liberada, para obtê-los, a aplicar no sistema financeiro, além de pagar a seus administradores polpudos honorários de executivos.
No Conselho Consultivo, com oito representantes, dos quais a metade indicada pelo governo, há espaço para apenas um representante dos usuários dos serviços (este indicado pelo Conselho Nacional de Saúde) e um representante dos trabalhadores (indicado pela entidade sindical).
Entre várias outras contradições, enquanto sinaliza para a redução de gastos, a empresa vai atuar com altos custos para a manutenção de seu grupo dirigente. Além disso, retrocede ao regime celetista, que envolve despesas com o recolhimento do fundo de garantia (FGTS) e também com a demissão de empregados, já que o sistema exclui a estabilidade no serviço.
Carreirão chama a atenção para a incoerência de abrir tantos flancos para novos gastos, enquanto se poderia aplicar diretamente no próprio sistema público de saúde, que vive às voltas com as dificuldades geradas por receber minguados recursos financeiros. O capital social inicial destinado à Eserbh, de R$ 5 milhões (conforme estabelece o artigo 6º do Estatuto, criado pelo decreto 7.661), já seria um bom investimento para os HUs, que vivem sempre com o pires na mão. A Ebserh é uma empresa que define o rumo dos hospitais-escola, de forma separada da universidade, que é uma autarquia dotada de autonomia didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial, além de estar sujeita ao princípio constitucional da indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão.
A autonomia “dança”
O procurador André Stefani Bertuol, que participou do seminário no HU da UFSC, acompanha desde 2007 a discussão sobre as tentativas de privatizar a gestão dos HUs. Sem meias palavras, o procurador afirma que duas coisas imediatamente “vão dançar” com a implantação da Ebserh: a autonomia universitária e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Com a empresa, ele frisa, “não há autonomia, mas subordinação, além de que as linhas de pesquisa devem passar a ser pautadas pelo lucro.”
Para o procurador do Ministério Público Federal, há uma clara linha de continuidade, ligada a um projeto de poder, nos mecanismos que desencadearam a criação da Ebserh. Tudo começou com o Projeto de Lei Complementar para criar a Fundação Estatal de Direito Privado (PL 92/ 2007), que enfrentou forte resistência dos movimentos, mas ainda tramita no Congresso em regime de prioridade; depois veio a Medida Provisória 520, que autorizava o poder executivo a criar a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A., que chegou a ser aprovada na Câmara dos Deputados, mas como não foi apreciada no tempo necessário, perdeu a validade quando tramitava no Senado. Então, passou a tramitar, em regime de urgência, o PL 1749/2011, transformado na Lei Ordinária 12550, que finalmente instituiu a Ebserh no apagar das luzes de 2011.
Tudo que estava previsto na proposta da Fundação Estatal de Direito Privado, combativa pelos movimentos sindicais e populares, agora está na Ebserh. “A ideia contida na lei é de que o controle atrapalha”, lembra o procurador André Bertuol. Então, ela flexibiliza tudo, desde as licitações até os contratos de trabalho com estabilidade e o controle social do Sistema Único de Saúde, ferindo gravemente determinações da Constituição.
O procurador diz que o projeto foi tocado de modo ‘tratoral’, e que a lei fere os eixos estruturantes da transparência e do controle, como o orçamento público, o "teto remuneratório", os limites fiscais, os sistemas corporativos como o Siafi e o Siape. Bertuol também se preocupa com os riscos de dilapidação dos bens públicos transferidos à Ebserh e a outras entidades de natureza privada que possam ser criadas com a mesma finalidade, que passariam a receber tratamento próprio do setor privado, sem as proteções constitucionais que asseguram a impenhorabilidade do patrimônio.
Justiça seja feita
Vários outros procuradores atuam na defesa da saúde pública e do SUS como sistema público e universal. Todos eles afirmam que a privatização de hospitais é inconstitucional. No debate "Lutas contra a privatização da saúde no campo jurídico", realizado durante o Seminário da Frente Nacional contra Privatização da Saúde, que ocorreu de 7 a 10 de junho, em Maceió, o sub-procurador geral da República Oswaldo Silva afirmou que a grande maioria dos membros do Ministério Público é contrária à privatização da saúde. Ele orienta militantes e profissionais de saúde a acionar o Ministério Público contra a privatização dos hospitais e serviços de saúde. Assegura que o Ministério Público é independente e os procuradores devem atuar como advogados da sociedade.
Como informa artigo sobre o seminário, publicado por Raquel Júnia, da Fiocruz, os procuradores criaram uma Comissão Permanente de Defesa da Saúde, que faz parte do Grupo Nacional de Direitos Humanos vinculado ao Conselho Nacional de Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG). A Comissão estabeleceu uma série de enunciados para orientar a ação dos cerca de mil procuradores que atuam em todos os Estados do país.
O primeiro enunciado deixa claro que "a saúde pública deve ser exercida diretamente pela administração direta, devendo o Ministério Público promover medidas para garantir esta diretriz constitucional, inclusive o ajuizamento de ações civis públicas". O segundo, rechaça a transferência da gestão dos serviços para organizações de direito privado, como as OSs e a Ebserh.
Oswaldo esclareceu, no seminário da Frente, que não é permitida a transferência integral da gestão e da execução das ações e serviços de saúde do Estado para pessoas jurídicas de direito privado, como as OSs, as OSCIPs, a Ebserh ou qualquer outra entidade, pois a saúde é dever do Estado, podendo a iniciativa privada participar do Sistema Único de Saúde apenas em caráter complementar.
Para Oswaldo, a transferência da gestão para as Organizações Sociais é irregular, pois o Estado não pode simplesmente abrir mão de sua responsabilidade pelos serviços de saúde, transferindo tudo para as mãos da iniciativa privada. Oswaldo exemplifica que a Constituição apenas permite, em casos de grave crise epidemiológica, por exemplo, alugar leitos do setor privado, sem, no entanto, transferir para ele a gestão dos serviços de saúde.
O procurador do Ministério Público do Trabalho da Paraíba, Eduardo Varandas, também participou do seminário da Frente, afirmando que terceirização e quarteirização via OSs e Oscips explicitam a "piada" que está sendo feita no Brasil com o texto constitucional. Ele cita a Constituição de 1988 que, no artigo 196, estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do estado".
Varandas lembra que terceirizações e quarteirizações da saúde pública através de organizações privadas como as OSs e Oscips se tornaram "epidêmicas" no Brasil. É para burlar o concurso público é que os governos estaduais contratam empresas terceirizadas, muitas delas verdadeiros “embustes”, que atuam com lavagem de dinheiro público, superfaturamento e burla da lei das licitações e contratos, denuncia o procurador da Paraíba. Na área trabalhista, ele acrescentou, são utilizados também mecanismos ilegais como sonegação de FGTS, desvios de função, salário pago inferior ao registrado na carteira do trabalho.
Um exemplo citado pelo procurador é o do Hospital de Traumas da Paraíba, entregue a uma Organização Social. Ali, segundo ele, já apareceram vários problemas trabalhistas e irregularidades detectadas pela vigilância sanitária. O MPT da Paraíba até ingressou com ação civil pública pedindo que o Estado fosse condenado pela privatização do hospital, mas a decisão ainda corre na justiça. Varandas enfatiza que o setor de terceirizações lidera os acidentes de trabalho no país, respondendo também pelo maior número de reclamações por descumprir a legislação trabalhista.
Sem lucro, setor fecha
Como sempre, depois que se aprovam leis autoritárias, a falsa democracia libera para a adesão voluntária ao mesmo tempo em que insinua a pressão, até com ameaças veladas. José Rubens Rebelatto, primeiro presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, em reunião da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), chegou a afirmar que “não há qualquer possibilidade de os hospitais universitários deixarem de aderir”. Foi obrigado, em seguida, a esclarecer que as instituições que não aderirem continuarão a ser financiadas pelo Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (Rehuf).
O auditor do SUS Pedro Carreirão Neto confirma que não há a menor possibilidade de os hospitais que não aderirem à Ebserh ficarem sem orçamento. O procurador André Bertuol também afirma que tal argumento não pode de forma alguma ser utilizado por grupos interessados em impor a adesão como a “salvação dos HUs”. Ao contrário, a adesão a essa empresa de direito privado é que representa um risco iminente para a saúde dos HUs, hospitais-escola que formam profissionais da saúde e cuidam da saúde da população.
Uma das consequências para a comunidade, no caso de adesão à Ebserh, certamente é a redução gradativa do ritmo de atendimento aos mais pobres, pois a lei abre margem para estabelecer a dupla porta nos HUs, com filas mais lentas para os pacientes do SUS em favor dos convênios privados de saúde, em geral atendidos mais rapidamente, como mostra a experiência.
O deputado Amauri Soares, que faz parte da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Santa Catarina e atua contra a mercantilização dos serviços de saúde, denuncia o que aconteceu no setor de queimados do Hospital Infantil de Joinville, administrado por uma Organização Social de Curitiba, que, em 2008, venceu a licitação aberta pelo governo catarinense. Segundo o deputado, os dez leitos destinados aos pequeninos que se queimarem foram fechados pela administração da Organização Social Hospital Nossa Senhora das Graças, com a desculpa de que o setor de queimados não trazia retorno. Não justificava, pela demanda atendida, o repasse de recursos do Ministério da Saúde.
O tratamento de queimados é longo e doloroso, o que deve contrariar a expectativa da OS com a “execução” de serviços que tragam resposta mais rápida e justifiquem maior investimento público no hospital. Assim, as crianças do norte do Estado que necessitarem de atendimento, agora terão que ser transferidas para o Hospital Joana de Gusmão, em Florianópolis, com apenas dez leitos para dar conta de todo o Estado catarinense, certamente provocando um represamento do atendimento na capital.
Serviço de saúde tem que dar retorno? O que significa retorno? Lucro? O investimento de recursos públicos no setor privado que trabalha com a saúde humana na lógica da mercadoria é escandaloso. É por essas atitudes inadmissíveis de gestores de Organizações Sociais, que fecham sem piedade setores não lucrativos, é por essas legislações que ferem o direito humano à vida e ao cuidado na hora da doença, que o procurador André Stefani Bertuol afirma que não vai desistir de combater esses instrumentos que privatizam a saúde pública e ditam uma educação e linhas de pesquisa pautadas pelo lucro.
A função do Ministério público, diz Bertuol, “não é de agradar ninguém”. Ele já fez várias representações que foram arquivadas, mas promete ingressar com novas ações para questionar a privatização do atendimento público da saúde humana por empresas que querem, antes de tudo, ser lucrativas, investir no mercado financeiro.
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