Tribunal de Justiça paulista nega recurso contra sentença de outubro de 2008 que declarou o ex-comandante do DOI-Codi culpado pela tortura de três integrantes da família Teles nas dependências do órgão. Segundo entidades de direitos humanos, no período em que Ustra esteve à frente da unidade foram torturados no local 502 presos políticos, 40 dos quais morreram em decorrência dos abusos.
Por Igor Ojeda
São Paulo - O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou nesta terça-feira (14/08), por três votos a zero, o recurso do coronel reformado do Exército Carlos Brilhante Ustra contra a sentença, de outubro de 2008, que o declarou responsável pela tortura de três integrantes da família Teles nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão da ditadura então comandado pelo réu.
A ação, movida em 2005, é de caráter cível declaratória: a intenção é apenas que a Justiça reconheça Ustra como torturador e que ele causou danos morais e à integridade física de Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles, Criméia Schmidt de Almeida, Janaína Teles e Edson Luís Teles durante o período em que estiveram detidos, entre 1972 e 1973. Segundo Aníbal Castro de Souza, um dos advogados da família Teles, Ustra ainda pode recorrer da sentença, tanto no STF quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“Estou muito feliz com essa vitória, pois ela começa a fazer justiça com a sociedade brasileira, que sofreu com a ditadura e sofre até hoje com a impunidade”, disse Criméia, logo após o julgamento. Segundo ela, a ação movida por sua família pode contribuir para que o Estado brasileiro cumpra as determinações da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), de dezembro de 2010 – como, por exemplo, a investigação e punição de torturadores em envolvidos em crimes da Guerrilha do Araguaia. “A sociedade está tomando consciência de que a impunidade dos crimes do passado mantém a impunidade do presente”, afirmou.
Maria Amélia lembrou que a decisão desta terça-feira veio quatro décadas depois que ela e seus familiares foram presos e torturados no DOI-Codi. “Estou emocionada”, disse. “A Justiça avançou nesses sete anos [desde o início da ação, em 2005]. Nós provocamos o judiciário quando pedimos que declarasse o Ustra um torturador. Nesses sete anos, a Justiça compreendeu que os crimes da ditadura são intoleráveis, inadmissíveis. Espero que outras famílias também entrem com ações”.
Já Fábio Konder Comparato, outro dos advogados da família Teles, afirmou que a negação do recurso de Ustra pelo TJ-SP “contribuirá muito” para o debate sobre a punição dos torturadores que vem ganhando força no país recentemente, principalmente após a instalação da Comissão Nacional da Verdade. Segundo Comparato, levando-se em conta a justificativa dos desembargadores no momento de anunciar seus votos, é possível perceber que eles “examinaram com profundidade uma decisão que parece justa conforme as exigências da ética”. De acordo com o advogado, a decisão “veio desagravar o Estado brasileiro, que estava em desonra”, embora, como destacou, “a humilhação de ter sido torturado e a tristeza de ter familiares mortos sob tortura não acabe”.
Comparato revelou ter proposto ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OEA) que a entidade entrasse com uma nova ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no Supremo Tribunal Federal (STF), dessa vez contra o Estado brasileiro, pelo não cumprimento da sentença da OEA. “O Conselho Federal aprovou a proposta, mas irá ajuizá-la mais tarde, pois o STF está ocupado com outras questões no momento”, disse. Em abril de 2010, o STF rejeitou a ADPF 153, protocolada pela OAB, que pedia uma reinterpretação da Lei de Anistia no sentido de que ela não abarcasse crimes comuns, como tortura, sequestro e assassinato.
A sentença de primeira instância contra Ustra foi dada pelo juiz Gustavo Santini, da 23ª Vara Civil. Ele julgou improcedente, no entanto, o pedido de Janaína e Edson, filhos de Maria Amélia, que tinham quatro e cinco anos na época. Na ocasião, foi a primeira vez na história do país em que houve o reconhecimento judicial de que um agente de Estado participou efetivamente de torturas contra civis – anteriormente, todas as decisões semelhantes haviam sido contra a União. Em sua sentença, Santini refutou o argumento dos advogados de Ustra de que o processo não poderia continuar em razão da Lei da Anistia.
O julgamento do recurso do coronel reformado teve início em maio deste ano. Após a sustentação oral de Comparato, que argumentou contrariamente às questões preliminares alegadas por Ustra para revogar a sentença de primeira instância, o desembargador Rui Cascaldi retirou o processo de pauta. Relator do caso no TJ-SP, Cascaldi afirmou então que havia elaborado seu voto há muito tempo e que, após ouvir os argumentos da família Teles, precisaria reler os autos do caso e gostaria de mais tempo para proferir sua decisão.
Nesta terça-feira, o relator do caso refutou todos os pontos da apelação de Ustra, entre eles a de que a Lei de Anistia impedia processos contra agentes da ditadura. “A própria Lei de Anistia reconhece a relação jurídica que decorre dos delitos cometidos pela repressão, afastando ações no âmbito penal, não no cível”, disse. Quanto ao argumento da defesa do coronel reformado do Exército de que um eventual crime cometido por ele estava prescrito, Cascaldi lembrou que crimes como a tortura são imprescritíveis. “Portanto, como a apelação não oferece elementos novos à sentença de Gustavo Santini, nego o recurso”, concluiu. Acompanharam o voto do relator os desembargadores Carlos Augusto de Santi Ribeiro e Hamilton Elliot Akel.
Em maio, em sua sustentação oral, Comparato também havia rechaçado a tese de que a ação da família Teles estava impedida de continuar por causa da Lei de Anistia. “É preciso uma dose exemplar de coragem para sustentar hoje que a anistia penal elimina a responsabilidade civil. O artigo 935 do Código Civil é textual: a responsabilidade criminal independe da civil”, disse.
Na ocasião, o advogado dos Teles afirmou ainda que aquilo que estava em jogo no julgamento da ação era a credibilidade do Estado brasileiro diante da opinião pública nacional e internacional. “Não se trata aqui de decidir simplesmente de modo frio e abstrato, se há ou não uma relação de responsabilidade civil que liga o apelante aos apelados. Trata-se antes, de julgar se um agente público, remunerado pelo dinheiro do povo, exercendo funções oficiais de representação do Estado, que podia ordenar e executar, sem prestar contas à Justiça, atos bestiais de tortura contra pessoas presas sob sua guarda.”
Utilizando o codinome de Major Tibiriçá, Ustra comandou, entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, a unidade paulista do DOI-Codi. Segundo entidades de direitos humanos, no período foram torturados no local 502 presos políticos, 40 dos quais morreram em decorrência dos abusos.
Em junho deste ano, o coronel reformado do Exército foi condenado em primeira instância pela Justiça de São Paulo a pagar uma indenização de R$ 100 mil à família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto sob tortura em julho de 1971 na sede do órgão. Em sua sentença, a juíza da 20ª Vara Cível do foro central de São Paulo, Claudia de Lima Menge, destacou que a Lei de Anistia não guardava relação com ação por danos morais movida por parentes da vítima.
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