domingo, 13 de janeiro de 2013

Contra a internação compulsória a usuários do Crack


Publicado em: 17/12/2012 15:38:00

Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 13/01/2013

Em artigo exclusivo chamado "Sou contra a internação compulsória a usuários do Crack", Túlio Batista Franco, o integrante do Cebes e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), faz um apelo contra a política de internação compulsória de usuários do Crack. "É na propositura do resgate de uma humanidade perdida em algum lugar, em uma sociedade que banaliza o sofrimento alheio que pretendo fazer esta discussão", coloca. 

Sou contra a internação compulsória a usuários do Crack

Por Túlio Batista Franco 

"Se eu tivesse elevado a minha voz desde o começo em vez de me calar em todas as línguas do mundo…" (Van Gogh)

O título na primeira pessoa é para atribuir o caráter de um texto-manifesto, é meu grito. As cenas de barbárie cometidas contra usuários de crack veiculadas na mídia quase diariamente, nos invade com sua prepotência de uma moral hipócrita, associada a uma política equivocada de combate às drogas. É na propositura do resgate de uma humanidade perdida em algum lugar, em uma sociedade que banaliza o sofrimento alheio, que pretendo fazer esta discussão.

O consumo do crack tem sido apresentado como um problema social, mas não é o único: convivemos ainda com altos índices de violência, exclusão e abandono. E estas questões estão associadas ao alto consumo de crack, que aparece no cenário das existências humanas como a possibilidade de se obter um rápido momento de prazer proporcionado pelo seu consumo. Frente a uma realidade cruel como a sociedade atual se apresenta, busca-se um instante de não-realidade, a desruptura do meio violento, carente, habitado por afetos negativos.

Geralmente, quando alguém se vê diante de um outro que consome o crack, não pergunta pra ele e pra si mesmo:  "Qual e a sua história de vida?". Histórias de vida é coisa de humanos, e o usuário de crack está sendo despido de sua humanidade, algo parecido com o “homo sacer” mencionado por Agamben no seu livro “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua”: aquele que só tinha a própria vida, e nada mais se inscrevia sobre ela, aparecendo como uma “vida nua”, desprovida de tudo, inclusive das representações do humano. O usuário de crack está sendo desumanizado pelo julgamento moral, pela intolerância social, pela generalizada criminalização.

Apesar do enunciado de que o crack é um problema de saúde pública, o tratamento da questão ainda tem um forte caráter repressivo, que opera sobre dois planos. O primeiro agenciado pela política de combate às drogas, que resulta em intolerância e repressão, demonstradao pelo aumento da população carcerária relacionada às drogas desde que a nova Lei de Drogas foi aprovada em agosto de 2006. De 2007 a 2010, essa população aumentou 62,5%, um acréscimo que se deu justamente sobre pessoas que eram rés primárias e não tinham envolvimento com o crime organizado. Os usuários sofrem com abordagens repressivas e violentas.

Descriminalizar é o passo fundamental para políticas mais efetivas de combate às drogas, por parâmetros humanitários e de cidadania. Experiências de controle de uso do crack e outras drogas, onde seu uso foi descriminalizado, os usuários perderam o medo de buscar ajuda, aumentando em muito aqueles que ingressavam nos programas de apoio, cuidado e redes de serviços de saúde. O segundo plano de intervenções se faz pelo recolhimento compulsório e a internação por período de tempo determinado, caracterizando assim uma intervenção e tutela sobre as pessoas, realizada de modo violento e ilegal.

 A política de combate ao crack no Rio de Janeiro

O Rio de Janeiro é atualmente uma das cidades de maior visibilidade no mundo, tendo à frente a realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Isto resulta em grandes intervenções urbanas que preparam a cidade para os eventos. Os efeitos desta intervenção na população mais vulnerável socialmente em geral, e especificamente aos usuários de crack, caracteriza uma política violenta, autoritária, militarizada e anti-cidadã. O recolhimento compulsório usado como dispositivo para impor o tratamento aos usuários tem por base o argumento de que essas pessoas “perderam o governo da sua própria vida”, fazendo com que o estado intervenha sobre elas. Com este discurso o governo do Rio de Janeiro legitima junto à população o “arrastão oficial” que rouba os corpos da sua vida por meio violento, os tira da rua encarcerando-os para um suposto projeto terapêutico que comprovadamente é precário e ineficaz.

A prática de internação compulsória é ilegal porque restringe o direito constitucional de ir e vir, ineficaz socialmente, porque o isolamento reforça a descriminação, e tecnicamente, pois se sabe que o índice de recaídas para os que passaram por tratamento compulsório é em torno de 96 a 97%, o que faz com que a internação compulsória seja condenada de modo geral, inclusive por programas de combate às drogas de comprovado sucesso, como o de Portugal. A estratégia usada no Rio de Janeiro parte de uma análise simplista da realidade, visa apenas o curtíssimo prazo e tem um forte agenciamento moral. A política atual no Rio de Janeiro trata o usuário de drogas como algo que deve ser simplesmente removido da paisagem urbana.

A boa notícia no cenário é a perspectiva de criação da Rede de Atenção Psicossocial proposta pelo Ministério da Saúde, que propõe dispositivos de cuidado à população de rua, usuários de crack e outras drogas. Mas a iniciativa encontra-se em estágio inicial, ainda com dificuldades de responder à extensão e urgência do problema. Associa-se no Rio de Janeiro a não-vontade política de construção de uma rede ampla, com capilaridade social e no território que permita intervenções em larga escala através de dispositivos de cuidado.

É possível cuidar sem reprimir

O cuidado aos usuários de crack deve eliminar qualquer hipótese repressiva e parte da diretriz da descriminalização do uso, reconhecimento do usuário como cidadão pleno de direitos, merecedor de atenção, respeito e afeto. Vários dispositivos têm sido usados para o cuidado como os consultórios na rua, formados com equipes multiprofissionais e atividade diária junto à população; estratégias de redução de danos com vistas a gerar confiança e criar vínculos entre profissionais da saúde e usuários, tendo em vista projetos terapêuticos mais duradouros e eficazes. Ter uma variada oferta de ações assistenciais e apostar na criação da Rede de Atenção Psicossocial e qualificar o seu funcionamento.

É preciso “parar de perseguir o doente e perseguir a doença” e “trocar prisão por tratamento”: estes são alguns dos preceitos do programa português, que já está sendo replicado para Argentina, México, República Checa e mais recentemente a Noruega, e é considerado um dos maiores sucessos do mundo. Próximo da nossa cultura, o modelo de Portugal nos serve bem como subsídio. A maior evidência de que o controle do uso de crack e de outras drogas pode ser feito sob diretrizes de cidadania, respeito e cuidado é este programa desenvolvido em Portugal. Abaixo um extrato do relatório "Descriminalização da droga em Portugal: lições para criar políticas justas e bem sucedidas sobre a droga", elaborado pelo constitucionalista norte-americano Glenn Greenwald e publicado no jornal português “Econômico” em 26/07/2010.

“Desde 1º de Julho de 2001, altura em que a aquisição, posse e consumo de qualquer droga estão fora da moldura criminal e passaram a ser violações administrativas, o consumo de droga em Portugal fixou-se ‘entre os mais baixos da Europa, sobretudo quando comparado com estados com regimes de criminalização apertados’. A explicação, segundo Greenwald, reside nas oportunidades de tratamento. As pessoas deixaram de ter medo do sistema judicial e perderam o receio de procurar ajuda. Por outro lado, mesmo as que continuam a consumir são merecedoras da ajuda do Estado’, diz o presidente do IDT. Em 2009, 45 mil pessoas integravam uma das fases de tratamento, incluindo pessoas com problemas de alcoolismo, um número ‘recorde’, segundo João Goulão. E destas 45 mil pessoas, 40% trabalham ou estudam, acrescenta o presidente do IDT”.

Dados de 2006 mostram que a prevalência do consumo de drogas em Portugal desceu de 14,1% para 10,6% face a 2001 nas idades entre os 13 e os 15 anos, e de 27,6% para 21,6% na faixa etária entre os 16 e os 18 anos. 

Propostas de cuidado ao crack

Para elaborar um plano de controle ao uso do crack é necessário eliminar qualquer julgamento moral sobre o uso de drogas, considerar como diretrizes gerais a descriminalização do uso, programas de redução de danos, equipes multiprofissionais organizadas em consultórios na rua, estabelecimento de vínculo entre profissionais e usuários, programas de apoio e ajuda para estabelecimento de vínculos sociais, construção de projetos de futuro, sonhos e tudo o que alimenta a existência humana.

Há uma mobilização nacional contra a internação compulsória e medidas repressivas em geral, entre outras, a Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos - FNDDH, que tem orientado para várias propostas de cuidado como por exemplo:

• A ampliação e o fortalecimento da rede de atenção psicossocial;
• O incremento das equipes da Estratégia de Saúde da Família e dos Consultórios na Rua, bem como dos NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), como estratégia prioritária no trabalho com os usuários de drogas, diretamente nos seus territórios;
• A ampliação da rede de serviços da assistência social, em cumprimento à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais instituída na Resolução 109 do Conselho Nacional de Assistência Social;
• Garantia de financiamento de políticas públicas nas áreas de cultura, educação, esporte e lazer com a criação de projetos e programas que tratem a questão de forma transversal em parceria com escolas, universidades, Pontos de Cultura, Segundo Tempo, entre outros.

Este é o ponto de partida para o debate mais amplo em torno da construção de um plano de ação para o combate às drogas.

Niterói, 12 de dezembro de 2012

*Retirado do Cebes
**Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 13/01/2013


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