Publicado em 21/01/2013
Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 23/01/2013
Fonte: http://darkcontinentblog.blogspot.com.br |
Por Ruy Braga*
Se confiarmos no atual estado de desassossego dos bairros nobres da cidade, concluiremos que a luta de classes chegou às cozinhas. Patroas descobrem aflitas que as empregadas não aceitam mais receber um salário-mínimo. Além dos direitos garantidos, como férias de 20 dias úteis e vale-transporte, elas passaram a demandar o seguro-desemprego. Faltam braços e afloram comportamentos inusitados: suprema audácia, as domésticas requerem o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e recusam-se a dormir no trabalho. Remanescente arquitetônico dos tempos da casa-grande, o cubículo dos fundos dos apartamentos paulistanos está lentamente mudando de serventia e vira depósito.
Eis a lamúria. No entanto, se deixarmos de lado as enraizadas disposições culturais da classe média alta, o momento atual do trabalho doméstico adquire tonalidades menos agudas. Em primeiro lugar, não é verdade que o aquecimento do mercado de trabalho brasileiro enfraqueceu a oferta de serviços domésticos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), entre 1999 e 2009 o número de trabalhadores domésticos saltou de 5,5 milhões para 7,2 milhões. Aquietai-vos, patroas, pois o emprego doméstico segue firme como a principal ocupação nacional, acompanhado de longe pelo trabalho no telemarketing (1,4 milhões).
Na realidade, o baixo nível de desemprego, em torno de 5% da população economicamente ativa – índice mascarado pela grande participação do emprego formal precarizado –, elevou as expectativas dos trabalhadores subalternos. De fato, as empregadas estão mais exigentes. Mas, afinal, o que isso significa? Apenas que não aceitam trabalhar por menos de um salário-mínimo e meio, esperando alcançar direitos sociais já desfrutados pelos demais trabalhadores. Por que isso causaria assombro?
A razão é simples: no Brasil, o emprego doméstico é uma das mais antigas formas de trabalho assalariado, remontando ao período da escravidão. Assim, não é coincidência que, ainda hoje, mais de 60% da força de trabalho doméstica seja formada por negros. Além disso, cerca de 93% dos mais de 7 milhões de trabalhadores domésticos são mulheres. Elas são as genuínas herdeiras das escravas da casa-grande. Invisíveis à fiscalização do poder público, mesmo na principal metrópole brasileira, em 2009 apenas 38% das empregadas tinham carteira de trabalho assinada. Em todo o país, a formalização do trabalho doméstico mal alcança os 30%.
Contribuem para esses números vexatórios a baixa escolarização e as enormes dificuldades autoassociativas inerentes ao processo de trabalho doméstico. Sem mencionar as tradicionais formas passivas de resistência “molecular”, como atrasos e faltas frequentes, ficaria surpreso se as empregadas não aproveitassem a atual correlação de forças existente no mercado de trabalho para exigir, além do pleno début [estreia] na cidadania salarial, salários e condições de trabalho menos degradantes. Ao fazê-lo, elas apenas percorrem a trajetória histórica da classe trabalhadora: do campo para as cidades, atraída por direitos sociais, serviços públicos e oportunidades de profissionalização.
Em minha pesquisa de campo sobre os operadores de telemarketing, publicada recentemente no livro Política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (Editora Boitempo), tive a oportunidade de entrevistar inúmeras filhas de empregadas que identificavam no contraponto ao trabalho doméstico – destituído de prestígio, desqualificado, sub-remunerado e incapaz de proporcionar um horizonte profissional – a principal razão de ter buscado o call center em vez de seguir os passos das mães – mesmo quando a diferença salarial era favorável ao emprego doméstico. No telemarketing, essas jovens perceberam a oportunidade de 1) alcançar direitos sociais e 2) terminar a faculdade particular noturna que o serviço doméstico, devido à incerteza dos horários, é incapaz de prover.
Mesmo que o ciclo do emprego no call center frequentemente frustre a esperança de progresso ocupacional – afinal, a rotatividade é muito alta e os salários, muito baixos – ainda assim o telemarketing segue atraindo a fração mais jovem e escolarizada do grupo de domésticas. Como nesse setor a jornada de trabalho é de seis horas diárias e não há informalidade, a teleoperadora vive a oportunidade de alcançar direitos e terminar uma faculdade noturna.
Tomando pelo avesso a lamúria da classe média alta, é possível dizer que a preocupação das patroas prefigura um autêntico progresso social sumariado pela Proposta de Emenda à Constituição 478/10. Em trâmite no Senado, essa proposta iguala os direitos das empregadas aos dos demais trabalhadores com registro em carteira, assegurando jornada de trabalho de 44 horas semanais, FGTS, seguro-desemprego, horas extras e adicional noturno. Caso aprovada, seria um passo importante para a consolidação da precária cidadania salarial brasileira. E a luta de classes na cozinha teria cumprido parte de seu papel histórico.
-> Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 19.01.2013.
*Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP. É autor, entre outros livros, de "Por uma sociologia pública" (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e "A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial" (São Paulo, Xamã, 2003).
*Retirado da Boitempo
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