sábado, 16 de fevereiro de 2013

"Não deveria ser priorizada uma saúde pública baseada na obrigação da gestão individual de riscos": entrevista com Luiz David Castiel


Reproduzimos aqui uma entrevista do Informe ENSP com o pesquisador Luiz David Castiel. É uma importante reflexão sobre a gestão neoliberal da saúde pública e as concepções que ela carrega, muitas vezes calcadas na individualidade e na autoproteção/autocuidado: o oposto das ideias centrais da concepção e gestão da saúde da Saúde Coletiva. Para o pesquisador, a reflexão das premissas da concepção neoliberal se dá num volume muito inferior do que deveria ser. 

A leitura da entrevista é por nós altamente recomendada. Concorde-se ou não com a argumentação do pesquisador, é uma preciosa fonte de reflexões.

Publicada em 15/02/2013

Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 16/02/2013

Fonte: www.emancipacionsye.com
Comprar e vender saúde se tornou um vasto empreendimento

“Comprar e vender saúde se tornou um vasto empreendimento que traz reivindicações vigorosas de autoridade, numa época individualista em que nos incumbem ser responsáveis gestores pessoais de nossa própria saúde e de nossa família.” 

A opinião é do pesquisador da ENSP Luis David Castiel, em entrevista ao Informe ENSP. Para ele, há três forças vigorosas em ação que agem conjugadamente: o poder econômico, a gestão neoliberal individualizada e a pressão para se agir sem a certeza suficiente quanto às informações para orientar as decisões. “É importante criticar conceitos cujas premissas não costumam ser discutidas e ter uma suspeita saudável das apresentações midiáticas das questões de saúde”, sugeriu. 

Segundo Castiel, o papel mais importante da saúde pública seria enfrentar e criticar com ênfase o poder econômico altamente concentrado sob a forma de corporações que produzem medicamentos, equipamentos e alimentos. Ele é autor do livro "Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde", em parceria com Maria Cristina Rodrigues Guilam e Marcos Santos Ferreira, também pesquisadores da ENSP. 

Leia a entrevista a seguir.

Informe ENSP: Qual é sua proposta de promoção da saúde?

Luis David Castiel: Não tenho a pretensão de propor um modelo de promoção da saúde para substituir o vigente. Não se trata exatamente disso, mas de uma mudança de enfoques. Proponho discutir uma perspectiva que não é exatamente instrumental. Sugiro entrar nessa questão por outra visão conceitual, na qual se discutam ideias que se consagraram sem que tenhamos discutido suas premissas. 


Por exemplo: o que significa promoção de saúde a partir de outros conceitos relacionados à saúde – também discutíveis – que a constituem? Entre esses conceitos estão prazer, equidade, risco, normalidade, acessibilidade, vulnerabilidade e empoderamento.


Comprar e vender saúde se tornou um vasto empreendimento que traz reivindicações vigorosas de autoridade, numa época individualista em que nos incumbem ser responsáveis gestores pessoais de nossa própria saúde e de nossa família. As forças estruturais que determinam a informação de que dispomos para tomar decisões médicas são mais e mais complexas.



Informe ENSP: Que forças estruturais são essas?

Castiel: Há, esquematicamente, três forças vigorosas em ação que agem conjugadamente: 

- Poder econômico altamente concentrado sob a forma de corporações que produzem medicamentos e equipamentos em saúde; 

- Gestão neoliberal individualizada que propõe a obrigação pessoal no combate aos riscos; 

- Pressão para se agir sem a certeza suficiente quanto às informações para orientar as decisões que podem, por exemplo, ser enviesadas por interesses corporativos do campo da saúde e falta de confiabilidade das informações via Internet.

Algumas decisões sobre como lidar com esse estado de coisas serão muito pessoais quanto à questões de saúde: que comidas comer, que medicamentos tomar, que exercícios fazer (se for fazer), como administrar o estresse. É importante criticar conceitos cujas premissas não costumam ser discutidas e ter uma suspeita saudável das apresentações midiáticas das questões de saúde.

Informe ENSP: A lógica de mercado impõe a saúde como um item de consumo?

Castiel: Sim, é preciso ver a saúde sob determinados ângulos críticos. Isso significa que, mesmo que assumamos as mesmas decisões como antes, ainda assim as abordamos com outra perspectiva, não necessariamente submetidos a aspectos opressivos vinculados à lógica do mercado, produção e consumo, interesses alheios à dimensão do cuidado. 

Isso também inclui a tomada de decisões que evitem influências indesejáveis da medicalização e do moralismo vigentes nas práticas de saúde. A saúde está se tornando o local de uma nova moralidade. Um livro que aborda esse tema merece ser consultado: "Against health: how health became the new morality", editado por Jonathan Metzl e Anna Kirkland (New York Univesity Press, 2010).

Curiosamente, somos obrigados a administrar paradoxos sem sabermos exatamente que são paradoxos. De um lado, há pressões para consumir prazeres apresentados tentadoramente para nossa fruição no mercado e, simultaneamente, pressões para mantermos o autocontrole para não nos consumirmos diante das tentações sedutoramente oferecidas. Considero isso um desafio à nossa saúde mental de cada dia.

Informe ENSP: Então, pessoas com estilo de vida saudável não necessariamente geram uma população saudável?

Castiel: A pesquisadora holandesa Annemarie Mol tem um argumento. Segundo ela, num determinado local, hipoteticamente, mil pessoas em cem mil morrem de infarto de miocárdio ao ano. Pesquisas mostram que, se todos se dedicam a exercícios diários, os infartos passam a 700. Ou seja, a “saúde da população” cresce 30%. Mas e a saúde dos indivíduos dessa população? Se começam a se exercitar, a possibilidade de não morrer de ataque cardíaco cresce de 99% para 99,3%, ou seja, as propostas de prevenção são generalizadas e poderá haver algumas pessoas que tomarão medidas preventivas específicas sem necessariamente se beneficiarem disso. Por exemplo, níveis baixos de colesterol não seriam necessariamente bons para todo mundo.

Fonte: www.tribunadaimprensa.com.br
Há estudos – não sei se atualizados – que mostram que não há diferenças positivas para mulheres pré-menopáusicas (não obesas). A promoção de saúde é extensiva a todos, mesmo para aqueles que não sabem exatamente se estão de fato (o risco é probabilístico e populacional) expostos à ocorrência do evento indesejável. Na dúvida, parece mais salutar não apostar contra as probabilidades de desfechos desagradáveis, até porque lidar com os riscos costuma trazer estados de ansiedade.

Informe ENSP: O desenvolvimento da genética vem ajudando?

Castiel: Essa pergunta assim formulada tem uma dimensão genérica. Sem dúvida, sabe-se mais sobre aspectos genômicos de muitos adoecimentos para além das enfermidades monogênicas. Decerto, isso pode ajudar em termos farmacogenômicos para especificar melhor a ação dos tratamentos sobre os indivíduos que podem se beneficiar deles. 

Podem ser citadas como exemplos a terapia personalizada para diversos distúrbios psiquiátricos e a terapia medicamentosa com a varfarina, um medicamento anticoagulante oral. Mas, por outro lado, a promessa do início deste novo milênio, em que iria ser desvendado o "código da vida" ao se decifrar o DNA e se obter muito conhecimento a partir disso, não se efetuou na medida esperada. Há componentes extragenéticos (epigenéticos, comportamentais e simbólicos) que atuam na evolução humana e na sua constituição. Mesmo assim, há o risco de que os conhecimentos genéticos, quando adquiridos, se tornem tecnologias de aperfeiçoamento com caráter eugênico somente acessível a indivíduos com poder aquisitivo que permita o correspondente acesso e, assim, se aprofundem as iniquidades entre grupos humanos.

Informe ENSP: Qual é o papel da saúde pública para reverter esse quadro atual?

Castiel: Não deveria ser priorizada uma saúde pública baseada na obrigação da gestão individual de riscos, tal como preconiza uma determinada promoção da saúde. Mais importante, seria o enfrentamento e a crítica, com ênfase, de outros aspectos das forças mencionadas anteriormente: o poder econômico altamente concentrado sob a forma de corporações que produzem medicamentos, equipamentos e alimentos. 

Fonte: filosofiacienciaevida.uol.com.br

É impressionante como, antes dos anos 1980, os médicos, dentistas e, de certa forma, os pesquisadores biomédicos – estou falando em termos bem gerais – eram mais resistentes às influências das empresas farmacêuticas, de alimentos e de equipamentos médico-odontológicos. 

Era uma época em que a medicina e a odontologia eram vistas mais como atividades profissionais liberais e menos como negócio neoliberal no qual, cada vez mais, o paciente é encarado como um consumidor. Os contextos clínico-hospitalares e os ambientes de pesquisa foram consideravelmente afetados pelo lado business corporativo de lá para cá. Sobre o assunto, recomendo uma leitura importante: "White coat, black hat: adventures on the dark side of medicine", de Carl Elliott (Boston: Beacon Press, 2010).

Informe ENSP: Comente sobre a questão risco x controle. O senhor já afirmou, certa vez, que a população procura sempre calcular os riscos mensuráveis ligados à probabilidade de um evento indesejável.

Castiel: De certa forma, anteriormente, já comentei alguns aspectos nesse sentido. Mas quem procura calcular os riscos mensuráveis ligados à probabilidade de um evento indesejável são os pesquisadores de estudos epidemiológicos sobre risco. A população lida com essa informação como pode e, dependendo de especificidades de cada situação, se sacode como é possível.

A percepção do risco depende de vários elementos, alguns complexos, como aqueles referentes à subjetividade humana, mas há um relevante que depende da maneira como o expert enuncia para o paciente a formulação do risco. 

O ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002, o psicólogo Daniel Kahneman, descreveu a maneira como as pessoas escolhem entre alternativas probabilísticas que envolvem risco, nas quais as probabilidades de desfechos são conhecidas. Sua teoria postula que as pessoas decidem baseadas no potencial valor de perdas e ganhos, mais do que em relação ao desfecho final. Por exemplo, são diferentes as reações a enunciados de risco de 30% de se sofrer um evento grave de saúde em relação a 70% de não o ter.

O binômio risco/controle se autoalimenta para reforçar propostas como as de autocontrole alimentar que pode atingir níveis de preocupação social excessiva, tão incidentes nas ações de promoção da saúde, colaborando para o contexto de moralismo já mencionado no campo da saúde. Isso serviria como antídoto às possibilidades de baixar a guarda diante da perdição de ceder-se aos prazeres potencialmente perigosos, caso não haja permanente vigilância na comida que se ingere. Consuma, mas sempre com moderação. 

As pessoas, caso disponham de poder aquisitivo, têm aparente liberdade de escolha e direito de decisão em seus estilos de vida autônomos, mas desde que atuem com responsabilidade e comedimento – estilo de vida sim, desde que saudável. Mas total autocuidado e independência são ilusões, inflando o sentido de “autorização” daqueles que pensam que a alcançaram, causando ansiedade naqueles que mal a conseguem e deixando uma cidadania precária àqueles que não a conseguem.

Informe ENSP: O senhor publicou, pela Editora Fiocruz, o livro "Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde", com Maria Cristina Rodrigues Guilam e Marcos Santos Ferreira, também pesquisadores da ENSP. É impossível superar as perspectivas apresentadas pelos pressupostos preventivistas?

Castiel: Queria encerrar com palavras de otimismo, até porque pesquisas sugerem que o mau humor faz mal à saúde. Não acredito que seja impossível. 

Devemos perceber que isso ocorre não só na saúde. Sofremos pressões para nos colocarmos como gestores eficientes de projetos de vida que nos são apresentados como passíveis de serem bem-sucedidos em termos de perseverança/benefício. Então, passamos a comparar com projetos alternativos, fazer escolhas, para tentarmos realizá-los mediante nossos esforços - seria o popular “correr atrás de seus sonhos”... - em um contexto altamente competitivo e quiçá desgastante nos atuais contextos de trabalho. 

Como disse Carl Elliott no livro "Better than well: american medicine meets the american dream" (Nova York: Norton, 2004), a noção de vida como um projeto sugere responsabilidade individual e incerteza moral. Se sou planejador e gerente de minha vida, sou encarado, pelo menos em grande parte, como o grande responsável pelo meu sucesso, mas também pelo meu fracasso. Isso é muita responsabilidade e pode gerar considerável ansiedade.

Fonte: www.portalcampomaior.com.br
O controle do Estado sobre a saúde de indivíduos e das populações é hoje apregoado, sobretudo, em termos de autocuidado. Já vimos que tal proposição pode ser uma ilusão com certo grau de prepotência diante do que possa ameaçar nossa integridade. Isso não implica o aumento da autonomia, mas um novo tipo de controle individual, por meio do qual só valem as decisões sobre nossos corpos, de acordo com as expectativas sociais e normas que são consideradas racionais, prudentes e responsáveis. Sobre esse assunto, sugiro o livro "Biopolitics: an advanced introduction" de Thomas Lemke (New York University Press, 2011). 

No caso da promoção da saúde, há um lado que deve ser necessariamente enfrentado: o da responsabilização das vítimas de um sistema cujos conceitos que configuram as diferentes atividades de saúde pública (em suas diferentes vertentes de serviços, de ensino e de pesquisa) se naturalizam sem terem suas premissas discutidas. Passam a definir a vida de cada um de nós como algo padronizado, calculável e mensurável que foi obtido por meio dos resultados de estudos que a objetivaram normativamente e a modelaram. Isso empobrece a experiência de singularidade. Como diz o poeta, tem jeito de ser um dom de iludir, a dor e a delícia de ser o que é.

*Retirado da ENSP
**Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 16/02/2013


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