PUBLICADO EM 31/01/2013 06:00
Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 03/02/2013
“Dilma estabeleceu um teto para as indenizações rurais que inviabiliza a reforma agrária no Sul e Sudeste do país. Equipara-se a Collor em resultados da reforma agrária. Os números são pífios”
Por Carlos Daniel Gomes Toni e Felipe Atoline Freire de Andrade*
José Gomes da Silva, um dos autores do Estatuto da Terra e fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), costumava dizer que “mesmo a pior reforma agrária é capaz de oferecer casa, comida e trabalho”. Em São Paulo, fez-se uma reforma agrária tão ruim que os produtores rurais assentados agora correm o risco de perder justamente a casa, comida e trabalho tão duramente conquistados. Esse é o caso do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Milton Santos, no município paulista de Americana.
O PDS Milton Santos foi criado em 2005 com base em uma liminar. A Superintendência Regional do Incra em São Paulo solicitou reintegração de posse do Sítio Boa Vista, então explorado pela usina Ester para o plantio de cana-de-açúcar. O imóvel havia sido confiscado pela ditadura militar como pagamento de dívidas da família Abdalla. A área onde foi criado o assentamento fora repassada ao INSS, com o devido registro em cartório, e este cedeu a posse ao Incra em 2005.
Ocorre que a família Abdalla já havia obtido, ainda nos anos 90, sentença judicial transitada em julgado devolvendo-lhe o imóvel. Sabe-se lá por quê, não levou a decisão a registro. O INSS, por sua vez, embora detivesse o domínio, jamais exerceu a posse do imóvel, que continuou sendo utilizado para o cultivo de cana. Discutindo apenas a posse e não o domínio, a usina Ester entrou com um agravo no Tribunal Regional Federal da 3ª Região e conseguiu reverter a liminar, recuperando a posse da área. Armava-se, assim, o imbróglio.
Essa situação vem se arrastando desde fevereiro de 2012. Mas logo ficou claro para os assentados que a batalha na Justiça estava perdida. Os movimentos sociais têm sido vítimas de uma verdadeira ofensiva do Judiciário. A saída proposta foi a edição de um decreto de desapropriação por interesse social. Não se trata do tipo de desapropriação usual na reforma agrária, em que se leva em conta apenas o cumprimento da função social da propriedade da terra. A ideia seria utilizar a Lei 4.132, de 1962, que define de forma mais ampla a desapropriação por interesse social.
O governo, porém, nega-se a desapropriar a área. Alega que o imóvel já pertence à União. O que não resolve o impasse. Na realidade, Dilma Rousseff não quer criar um precedente. O mesmo instrumento de desapropriação – isto é, a Lei 4.132 – poderia ter sido utilizado para desapropriar o Pinheirinho e evitar o conflito que ocorreu em São José dos Campos há cerca de um ano, em que 6 mil pessoas foram brutalmente expulsas de suas casas.
Teto para desapropriações
O drama das famílias do Milton Santos se dá em um momento em que o governo descartou definitivamente a reforma agrária. Em 2012, havia 17 processos de desapropriação referentes ao estado de São Paulo na Casa Civil da Presidência da República. Aguardavam apenas a assinatura da presidente Dilma Rousseff para publicação de decreto declarando os imóveis de interesse social para fins de reforma agrária. A presidente mandou devolver todos, alegando a necessidade de ajustes.
Mas que ajustes? Dilma estabeleceu um teto para as indenizações de imóveis rurais desapropriados. Calcula-se quantas famílias o imóvel comporta e o valor a ser pago pelo Incra não pode exceder R$ 100 mil por família. Isso praticamente inviabiliza a reforma agrária nas regiões Sul e Sudeste do país. E pior: os imóveis rurais mais caros ficam, assim, isentos de cumprir a função social da propriedade da terra, conforme manda a Constituição Federal. Pois a consequência do não-cumprimento da função social era – ou deveria ser – justamente a desapropriação.
Não é à toa, portanto, que este governo se equipara ao governo Collor em resultados da reforma agrária. Os números são pífios, mas mascaram uma realidade ainda pior. Muitas das terras arrecadadas pelo Incra hoje são resultado de processos que tiveram início há pelo menos três anos. Esse é, em média, o tempo que os processos levam para tramitar na Justiça. Os números dos dois primeiros anos do governo Dilma, portanto, são reflexo do governo Lula.
Aparelhamento político
Mas a falta de vontade política do governo não é o único problema que aflige as famílias do Milton Santos e de outros assentamentos. Grave também é o aparelhamento do Incra. As superintendências regionais em todo o país foram entregues a grupos políticos locais. Em São Paulo, não é diferente. Esses grupos alegam ter “compromisso com a causa”. Não raro seus dirigentes são oriundos da Secretaria Agrária do PT. Mas, na prática, defendem seus próprios interesses. Usam largamente do clientelismo político e da terceirização para integrar cabos eleitorais à administração pública. A reforma agrária é tratada com pura demagogia.
Há cerca de dois anos tivemos um superintendente exonerado por envolvimento na Operação Desfalque da Polícia Federal, que investigou desvio de recursos públicos que deveriam ter sido aplicados nos assentamentos rurais. Esse mesmo ex-superintendente já tinha no currículo uma condenação em primeira instância por improbidade administrativa. Sabe-se que o Ministério Público Federal conduz diversos inquéritos sobre as mais variadas irregularidades praticadas em São Paulo. Apesar da troca de superintendente, o Incra em São Paulo continua nas mãos do mesmo grupo. Nada indica que a lógica do aparelhamento e do clientelismo tenha mudado.
Vamos a um exemplo do que a conduta irresponsável dos dirigentes do Incra legou aos trabalhadores rurais. O leitor sabe de quantos hectares cada família dispõe no assentamento Milton Santos? Pouco mais de um hectare. Nos últimos anos, o Incra criou verdadeiros minifúndios no afã de somar números e “mostrar serviço”. É o que chamamos de minifundização da reforma agrária. Relegou, assim, os trabalhadores rurais a condições dificílimas de sobrevivência.
É compreensível, portanto, que os assentados do PDS Milton Santos não possam contar com o Incra. E que ainda devam temer o Judiciário. Por isso, só a mobilização dessas famílias e de todos aqueles que apoiam a reforma agrária pode forçar o governo a tomar as providências adequadas para garantir sua permanência na terra. O Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal do Estado de São Paulo apoiou as ocupações do Incra e do Instituto Lula. E apoiará todas as manifestações que vierem a ser organizadas em defesa do assentamento Milton Santos. Sem a luta dos trabalhadores, não haverá reforma agrária!
* Carlos Daniel Gomes Toni e Felipe Atoline Freire de Andrade são, respectivamente, servidores do Ibama e do Incra e secretários-gerais 1 e 2 do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal do Estado de São Paulo (Sindsef-SP).
*Retirado do UOL
**Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 03/02/2013
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