Publicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 04/02/2013
O SUS na dança dos coroneis
Por Marcos Nepomuceno Silva [1]
A Lei 8.080 de 19 de Setembro de 1990 regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS), marca o nascimento deste e o coloca como instrumento de afirmação da dignidade humana. Lei que claramente reconhece a saúde em uma dimensão muito mais ampla e integral, na harmonia da complementaridade do tripé social, físico e mental dos indivíduos e das coletividades e não apenas como ausência de algum estado patológico, numa análise biologicista limitada ao indivíduo; pois emprego, educação, renda, moradia, lazer, segurança pública, mobilidade urbana, por exemplo, passam a ser tratados também como determinantes e condicionantes do nosso nível de Saúde.
E a Lei traz o SUS como patrimônio inalienável do povo brasileiro, com toda sua pretensão de ser grande, de ser público, de qualidade, gratuito, universal, integral, equânime, que preza, essencialmente, pela afirmação social de brasileiros e brasileiras.
Em posse destes elementos, é impossível não se perguntar o que tem feito o Estado para cumprir com tamanha responsabilidade. O que foi feito e, o mais importante, o que está sendo feito para que direitos tão essenciais não estejam destoantes das necessidades da população?
Fechando a discussão no Espírito Santo, não é preciso ir muito longe no tempo para encontrar algumas respostas. Basta hoje analisar o grande vazio deliberadamente deixado no campo social e a maneira como o “diálogo” com os movimentos sociais é feito, quando não tratados como caso de polícia: a política de mobilidade urbana na Grande Vitória é vergonhosa, a rede de atenção hospitalar é mal estruturada e a regionalização é falha – serviços concentrados na região metropolitana e dificuldade de cobertura nos interiores; mulheres, homossexuais e, sobretudo, a juventude negra continuam perdendo a vida para a violência e seu sangue é covardemente usado para alimentar o sensacionalismo conservador da mídia capixaba – enquanto o Programa Estadual de Direitos Humanos e o Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos permanecem no fundo de alguma gaveta empoeirada do Palácio Anchieta. O norte da política institucional se resume em cifras e números insensíveis e incapazes de dar conta da complexidade de nossa realidade social.
E na quarta-feira, 23 de Janeiro, esse questionamento veio mais uma vez trazer inquietação, quando uma notícia veiculada pela imprensa expôs uma séria ameaça que paira sobre a saúde pública capixaba: a possibilidade de paralisação das cooperativas de especialidades médicas e, por conseqüência, dos serviços públicos de saúde que por elas são mantidos, conforme contratos firmados com o Governo do estado. As negociações que poderiam dar fim a este impasse não avançam. O diálogo é negado até o último momento possível, e através da imprensa tenta-se impor os termos de um possível acordo e, sobretudo, sensibilizar a população enquanto mantém a saúde pública e, obviamente, os que dela dependem, a mercê do jogo de interesses das partes envolvidas.
Mas, para entendermos o impasse estabelecido, é importante compreender os princípios que regem os interesses divergentes do Governo e das cooperativas médicas. O Governo estadual está refém da organização de uma categoria, organização que por ele foi potencializada (conforme discussão adiante), na medida em que historicamente tem sido pouco responsável com a sua obrigação em garantir condições adequadas para que os profissionais médicos - e não seria exagero falar em todos os profissionais de saúde que estão no serviço público - possam com segurança e qualidade cumprir com suas funções.
Precarização do trabalho que consequentemente impacta na qualidade do serviço, afetando, por fim, os usuários e usuárias que a ele recorrem. Ou seja, a política institucional é incapaz de reconhecer o(a) trabalhador(a) como cerne, essência, de uma função ou serviço. Reconhecimento que deve passar obrigatoriamente pelo respeito aos direitos destes(as) trabalhadores(as), pela garantia de condições adequadas para desenvolver plenamente tudo que sabem, com um salário que corresponda integralmente ao seu nível de formação e condizente com a relevância do papel social que cumprem.
Organizar uma categoria e seu trabalho, bem como o que por ele é produzido, por meio de cooperativas, busca fundamentalmente superar o individualismo imposto pelo modo de produção ao ponto que organiza coletivamente os(às) trabalhadores(as) em sua frente de trabalho e dá conta, também, da retaguarda necessária ao desenvolver com qualidade e segurança das funções e serviços
executados: estrutura com melhores recursos materiais, salário, jornada de trabalho, etc. Ou seja, as cooperativas, portanto, objetivam fortalecer o trabalho e as condições de trabalho na medida em
que garantem coesão e ação em prol dos interesses coletivos.
Não demorou para que médicos e médicas no Espírito Santo assim se organizassem. Viram sua organização crescer e como estratégia as cooperativas empreenderam um movimento de boicote aos concursos públicos (que afirmavam a política institucional de precarização do trabalho) para o acúmulo de forças na “queda de braço” com o Governo. A partir daí foi como se a “criatura” se rebelasse contra aquele que foi responsável direto pelo seu nascimento. Concursos para as mais diversas especialidades médicas foram abertos, mas nenhum profissional aceitou se submeter ao que estava colocado.
Ao Governo não restou alternativa que não fosse ceder e firmar os contratos com as cooperativas nos termos, que de certa forma, foram impostos por elas. Por fim, as vagas para médicos(as) especialistas no serviço público deixaram de ser ocupadas por meio de concurso e passaram a ser praticamente geridas por estas entidades.
A lógica, então, se fez da seguinte maneira: de um lado o poder público e sua crônica incapacidade, acompanhada da má vontade política em garantir o mínimo aos(às) trabalhadores(as), e, do outro, uma categoria que encontrou na organização coletiva a solução para fugir da precarização friamente imposta. Logo, o que temos hoje é a imensa maioria dos serviços de média e alta complexidade da rede pública estadual, dependentes dos profissionais que pelas cooperativas são cedidos. Assim foi estabelecida a relação de dependência do SUS perante às cooperativas, assim é feita a terceirização do serviço público afirmando o pacto privatista que matreiramente tenta dar o tom fúnebre de sua marcha sobre a saúde pública e projeta o seu loteamento.
As cooperativas se especializaram em atuar na mediação das relações entre poder público e trabalhadores(as) e, conforme o tamanho que adquiriram, se corromperam para uma perspectiva de autossuficiência, que pouco preza pela integração do Sistema; trabalham cada vez mais de forma segmentada, impõe seus interesses e fazem de suas vontades regalias; limitam a integração e as possibilidades das equipes multidisciplinares em saúde e, por conseqüência, em pleno descompasso com os princípios fundacionais deste, entravam as possibilidades de avanço do SUS. Não há exagero em afirmar, portanto, que se converteram em instrumento da especulação privada sobre o Sistema público de saúde brasileiro e a relação passou a ser parasitária.
Que fique claro, entretanto, que não há nada mais nobre e merecido do que as conquistas que vem como fruto da organização da classe trabalhadora, mas, nem por isso, deixemos de problematizar a movimentação que ao longo do caminho se desvirtua, se faz segmentada e elitista, bem como as conseqüências desse processo.
Para além da precarização do trabalho em saúde, no Espírito Santo, o que tem feito o Estado para efetivar o SUS no exercício de sua plenitude? Obviamente esta pergunta está não na intenção de nos fazer chegar às respostas prontas de um “bom” gestor engravatado, acomodado no alto de seu gabinete, que com a ponta da língua passa a rasteira no mais inocente desavisado – vai omitir as não tão nobres intenções da política institucional e falar que tem investido o que prevê a Emenda Constitucional 29 (12% do orçamento estadual deve ser reservado à Saúde) e que tem se esforçado para ampliar a rede, é claro – mas para nos levar aos fatos que explicitam o que a cara de pau não deixa transparecer, fará ele questão de esconder, por exemplo, que no ano de 2013 irá transferir mais de R$ 289 milhões* para as instituições (ditas) filantrópicas e todo o “investimento” no aluguel de leitos hospitalares da rede particular, que só em 2012 foram mais de R$ 70 milhões*. No fim das contas, para o gestor ou governador tratar-se-ão apenas de números. (*Fonte: Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo).
Financiamento bastante limitado, transferência de dinheiro público para a rede privada, precarização do trabalho, não realização de concursos públicos conforme demanda as necessidades de estruturação do Sistema, terceirização dos serviços – são estes aspectos estruturantes da política privatizante que é interposta à saúde pública e, num movimento latente e gradual, destitui a nossa sociedade daquilo que tem de mais bonito e audacioso: o SUS.
É uma terceirização aqui, um prédio “bonitão” ali, mas carente de recursos humanos e materiais para funcionar adequadamente; outro convênio acolá firmado e por todos os cantos o caos: filas intermináveis, cidades do interior a contar com a sorte de uma linha de ônibus para “oferecer” atendimento na capital, o privado que a cada dia abocanha um pouco mais do público. E se engana quem pensou parar por aí. Não satisfeita, a cada dia que passa, a máquina do Estado se aperfeiçoa, aprende com os próprios erros e, sobretudo, com as manifestações populares, para melhorar sua maquiagem. Ou seja, faz com que o “melhor” esteja sempre por vir. E com seu tamanho “talento” “empreendedor” foi capaz de reunir todos os aspectos mencionados acima e sintetizá-los no corpo das Organizações Sociais de Saúde (OSSs) – hoje a mais sofisticada ferramenta de privatização do SUS.
As OSSs são entidades organizadas na sociedade civil com a finalidade de gerir Unidades Públicas de Saúde que integram a rede pela qual o governo do estado é responsável, desde um hospital a uma unidade básica; basta apenas ao poder Executivo a intenção em ceder o serviço, ou melhor, se desrresponsabilizar por ele. Sua base jurídica foi lançada no Espírito Santo em 2009, pelo então governador Paulo Hartung, na forma da Lei Complementar 489; e a primeira experiência se deu ainda neste mesmo ano, quando foi firmado o contrato de gestão com a Associação Congregação de Santa Catarina para assumir o Hospital Estadual Central, após este passar longo período em reformas para adequação e modernização de toda sua estrutura.
E gradativamente a política institucional vem recorrendo a esta ferramenta para enraizar a privatização do SUS e potencializar seu conseqüente desmonte. A atual administração, com Renato Casagrande à frente do Palácio Anchieta e Tadeu Marino comandando a Secretaria Estadual de Saúde, já contratualizou a cessão do maior hospital do Espírito Santo, que também, após receber grande volume de dinheiro em sua construção e modernização, o Hospital Estadual Dr. Jayme Santos Neves ficará sob gestão da Associação Evangélica Beneficente Espírito-Santense. Além de prontamente ter declarado que o mesmo modelo será adotado no novo Hospital Estadual São Lucas que, curiosamente, está em reformas desde o início de 2008. É o leilão dos hospitais Estaduais.
Poderia até pensar em coincidência ao ver três grandes hospitais públicos na região metropolitana, passar anos e anos em construção ou reformas para adequação e modernização, serem transferidos para a iniciativa privada (“que diz não ter fins lucrativos”). Inocência pensar então que poderia ela assumir alguma Unidade de Pronto Atendimento ou uma Unidade Básica de Saúde nos municípios de Mimoso do Sul ou Ecoporanga (extremos sul e norte do estado, respectivamente)? Sim, muita inocência seria, quando o maior volume do dinheiro corre é na alta complexidade com o fator “privilegiado” de estar nos grandes centros de consumo (tipo a Grande Vitória).
Consumir saúde: em qual mundo isso seria possível? Quando foi que concebemos fazer da saúde um mero produto? Isso nem sequer passou pela cabeça de muitos(as); porém, conforme os interesses do mercado e dos grupos empresariais a subvertem, permitimos passar sem muito discutir. É tal mercantilização que tomou conta da Saúde.
Mas vejamos então o que de tão “inovador” trazem as “magníficas” OSSs: não há transparência na gestão administrativa e financeira; a precarização do trabalho é elevada ao máximo; não há obrigatoriedade de licitação para compra de insumos e contratação de serviços – todos custeados com dinheiro público (quem custeia o serviço é o Governo do estado, que conforme pactuação de planos e metas transfere os valores para entidade gestora); a participação popular é bastante limitada, ceifa o controle social, portanto.
E com todo esse ar empresarial rodeado de tantos interesses que o inflam, como garantir que estes hospitais correspondam às necessidades da população e estejam plenamente integrados à rede SUS?
Lembram das cooperativas de especialidades médicas e de toda sua pujança na organização e defesa da categoria e seus interesses? Então...
Os hospitais públicos estaduais são, naturalmente, onde há maior demanda por médicos(as) especialistas. Faz, portanto, do Estado o principal cliente das cooperativas médicas. Hospitais estes que gradativamente estão sendo absorvidos pelas OSSs. Pronto! Eis aí o impasse que se estabelece entre Governo e cooperativas. Trata-se de uma disputa para ver quem tem o umbigo maior ou o olho, talvez.
Qual OSSs aceitará manter contrato com alguma cooperativa médica (ou de qualquer outra categoria) se por fora ela pode pagar menos a um trabalhador(a) que não é associado? Se ela pode contratar um funcionário(a) que não faz idéia de sua força quando organizado coletivamente... Qual o risco dela aceitar se submeter aos que são organizados(as) e que com coesão agem em defesa de seus interesses? Nenhuma, né... Ou seja, as cooperativas estão fadadas a perder espaço, a perder mercado e muito dinheiro, na medida em que as OSSs avançam. E contratos renovados ou não, a lógica privatista, tanto de um lado quanto de outro, permanecerá impedindo que o SUS possa plenamente exercitar seus princípios fundacionais.
Fonte: coordinadora25s.wordpress.com |
Obviamente o Sistema Único de Saúde não nasceu pronto, as dificuldades existem, as filas e a incerteza em conseguir certos procedimentos estão aí para nos lembrar que o mar de rosas está mais pra água e sal mesmo. Diariamente ele tem que aprender a lidar com as especificidades impostas pelo contexto de cada localidade, de um país de dimensões continentais, com suas diferenças culturais, econômicas e sociais; tem ainda que encarar o fato de ser condicionado pela vontade política de quem está à frente da máquina do Estado (seja na esfera municipal, estadual e/ou federal) e com os interesses de grupos e elites que em menor ou maior grau também influenciam a máquina. É grande o desafio em torná-lo tão pleno e efetivo quanto o idealizado, mas desistir não é opção de quem sonha e luta por uma sociedade em que prevaleçam as relações fundadas no respeito e na igualdade.
Por isso vamos, homens e mulheres, braços fortes e coração aberto fazer o que será!
“O amanhã começa de fato nas lutas de hoje.” (Daniel Bensaid)
[1] Marcos Nepomuceno Silva é Farmacêutico, usuário e defensor do SUS.
*O texto foi enviado pelo próprio autor
**Publicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 04/02/2013
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