Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde
Diferentes movimentos, pesquisadores e associações se manifestam contra a possível medida do governo federal de apoio à expansão dos planos de saúde privados para as classes C e D
Por Viviane Tavares do Rio de Janeiro (RJ)
A agenda da presidenta Dilma Rousseff no dia 26 de fevereiro não anunciava uma reunião com empresários do setor de saúde, mas a matéria do jornal Folha de S.Paulo apurou que ela se reuniu com cinco ministros de Estado, integrantes da área econômica e representantes do Bradesco, Qualicorp e Amil. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da presidenta, que negou o compromisso, mas, mesmo com a reação provocada por diversas frentes, não se pronunciou publicamente para desmentir o encontro. O mistério sobre a reunião ainda será desvendado, mas o assunto ajudou a trazer à tona mais uma vez o crescimento do setor privado na saúde brasileira.
De acordo com a matéria, a suposta reunião seria para a análise por parte do Executivo para a ‘redução de impostos, maior financiamento para melhoria da infraestrutura hospitalar e a solução da dívida das Santas Casas’. Em troca, o governo exigiria ‘uma série de garantias para o usuário’, com o objetivo de ‘facilitar o acesso de pessoas a planos de saúde privados, com uma eventual redução de preços, além da ampliação da rede credenciada’, além de ‘forçar o setor a elevar o padrão de atendimento’, como diz a Folha de S. Paulo.
Para o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Mário Scheffer este fato não se mostrou inusitado, mas a novidademque é apresentada são os protagonistas. “Um deles é a Qualicorp – que é uma intermediadora de planos de saúdes, que cresceu muito nos últimos tempos e tem um histórico agressivo de financiamento de campanhas políticas, – na última eleição apostou para todos os lados financiando tanto a campanha da Dilma quanto do Serra e de alguns governadores. Além disso, conseguiu emplacar o presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [ex-diretor presidente Maurício Ceschin que foi superintendente da Medial Saúde e da Qualicorp]. Outra novidade que faz a diferença é a entrada do capital estrangeiro.
Até então, o setor suplementar só existia com o nacional, mas vimos recentemente o maior negócio da saúde brasileira que foi a compra da Amil”, aponta Mario, completando: “Estes segmentos estão fazendo prospecção de outros mercados desde a reforma do Obama. E estas ações estão sendo anunciadas há algum tempo. Basta acompanhar o Valor Econômico, a revista Exame, a entrevista que o dono da Amil deu para as páginas amarelas da Veja. A intenção deste capital é ampliar massivamente o acesso a planos de baixo preço. O que vem à tona são esses dois protagonistas tentando materializar esta intenção”.
Por outro lado, o pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Geandro Pinheiro analisa a postura da presidenta Dilma Rousseff neste episódio, que, segundo ele, tem o propósito de dar resposta à demanda da população por saúde, além de fortalecer um modelo de desenvolvimento pautado pelo consumo. “A saúde como um todo está sendo questionada de todos os lados, e isso foi colocado para a presidenta como uma das áreas mais críticas, portanto, ela tem que dar uma resposta para as pessoas. E ela está dando e tem um apelo popular muito forte. A reforma sanitária não é algo que esteja na mente das pessoas, se dentro da própria reforma não há univocidade, imagina para a grande população? As pessoas querem saúde. Isso é dar uma resposta com um apelo popular fortíssimo e de uma marca de governo que será marcado por ampliar acesso da população, não se importando de que forma se dá este acesso. Além disso, podemos fazer uma ligação com a estratégia de consumo para o modelo de desenvolvimento, como em qualquer outra política do governo atual, mais forte ainda nestes dois últimos anos. Podemos ver, por exemplo, o Vale Cultura, que financia revista, TV a cabo... Ou seja, está vinculando aquilo que sai como preceito de direito para uma questão vinculada ao consumo. Se analisarmos, todas as políticas estão tendo este norte: de ampliar o acesso ampliando o consumo”, analisa.
Crescimento do setor privado
Vale lembrar que os incentivos e parcerias previstos são para um setor que já está dando certo há algum tempo. Baseado em dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess), o ano de 2012 foi mais do que satisfatório para o setor, já que a variação dos custos médico-hospitalares, ou seja, os valores pagos pelos serviços e procedimentos realizados, foi de 16,4%, quase três vezes maior do que a variação da inflação geral (IPCA) que foi de 6,1%. “A tendência de crescimento observada durante o ano de 2011 continuou no primeiro semestre de 2012, de forma que o índice atingiu o maior valor já observado desde o início da série histórica. O maior valor registrado anteriormente foi em 2009 (14,2%), logo após a crise de 2008”, aponta o estudo.
No entanto, o crescimento dos serviços ofertados deste setor não tem acompanhado a mesma escalada dos lucros. A cobertura dos planos de saúde é cada vez mais criticada pelos usuários. Como resultado disso, no dia 6 de março foi publicada no Diário Oficial uma nova medida por parte da ANS. A partir de 7 de maio, quando a norma entrou em vigor, todas as negativas a beneficiários para a realização de procedimentos médicos deverão fazer a comunicação por escrito, sempre que o beneficiário solicitar. De acordo com a assessoria de imprensa da ANS, durante o ano de 2012, a agência recebeu 75.916 reclamações de consumidores de planos de saúde. Destas, 75,7% (57.509) foram referentes a negativas de cobertura.
“Em São Paulo, por exemplo, 60% da população tem planos de saúde, mas, para os usuários, eles estão virando um tormento. Estamos dando subsídio público com a promessa de que o serviço de saúde vai melhorar, mas com a estrutura atual, eles não conseguem suportar a quantidade de pessoas que vem crescendo. A conta não está batendo e já chegamos a um colapso. Mas isso é resultado da permissividade e conivência da ANS que deixou que a expansão artificial deste mercado acontecesse. A solução apresentada agora para resolver isso é construir rede, puxadinho dos hospitais próprios, mas, para isso, as operadoras querem dinheiro do BNDES, vários tipos de isenção ...É quase um Programa de Universidade para Todos (Prouni) da saúde ou um Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC) das operadoras”, analisa Mario.
A professora da Faculdade de Serviço Social da Uerj Maria Inês Bravo concorda que há um crescimento progressivo do número de usuários de planos de saúde e aponta outros modelos de privatização do SUS, como as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), as Fundações Públicas, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e Parcerias Público-Privadas (PPP) como prejudicais ao sistema de saúde pública. “Contra fatos não há argumentos: o crescimento se deu de 34,5 milhões, em 2000, para 47,8 milhões, em 2011, tendo o Brasil se tornado o 2º mercado mundial de seguros privados, perdendo apenas para os Estados Unidos da América”, lembra. E completa: Há uma entrega acelerada para a gestão do setor privado, através da expansão dos chamados novos modelos de gestão, que têm sido denunciados como formas de intensa corrupção. Através destas organizações, o fundo público se torna mais facilmente transferido para o grande capital internacional e seus sócios internos, como os grandes laboratórios de análises clínicas e clínicas de imagem privadas, a maioria parte dos grandes conglomerados financeiros”, denuncia Maria Inês.
Mário acredita que este crescimento dos planos de saúde é ainda mais grave do que os modelos de gestão mostrados até agora. “Este movimento interfere totalmente no sistema de saúde que queremos. A ampliação dos usuários de planos de saúde para ¼ da população é uma fatia imensa se comparados a outros sistemas universais, de atendimento integral. Nestes outros países que oferecem sistemas de saúde semelhantes ao SUS, o plano de saúde faz um papel suplementar de 10 a 15% no máximo. Agora aqueles onde a participação dos planos de saúde se amplia, se transformam em sistemas duplicativos, e isso resulta nos piores sistemas, nos mais caros, nos mais ineficientes e que mais se afastam da equidade e integralidade”, aponta.
Manifestações contra o desmonte do SUS
Entidades alertam que o resultado é a falta de profissionais, a ineficiência da rede básica de serviços e o atendimento de baixa qualidade à população
Em menos de uma semana, diversos segmentos da saúde se manifestaram contra as medidas citadas pela reportagem da Folha de S.Paulo. Em nota, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) pronunciou sua posição contrária a este movimento de ampliação do sistema particular de saúde: “É uma proposta inconstitucional que significaria mais um golpe contra o sistema público brasileiro. E o pior: feita por quem deveria defender a Constituição e, por conseguinte, o acesso universal de todos os brasileiros a um sistema de saúde público igualitário.
Além de inconstitucional, a proposta discutida é uma extorsão. Na prática, é uma escandalosa transferência de recursos públicos para o setor privado. Aliás, recursos que já faltam, e muito, ao SUS. O SUS é um sistema não consolidado, pois o gasto público com saúde é muito baixo para um sistema de cobertura universal e atendimento integral. O resultado é a falta de profissionais, a ineficiência da rede básica de serviços e o atendimento de baixa qualidade à população”.
A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde também se pronunciou na tarde de ontem em relação ao ocorrido com um manifesto publicado em seu site. “Tal política não responde aos interesses da maioria da nação: sistemas de saúde controlados pelo mercado são caros, deixam de fora idosos, pobres e doentes, são burocratizados e desumanizados, pois as pessoas são tratadas como mercadorias. Se o SUS hoje não responde aos anseios populares por uma saúde universal de qualidade de acordo com a Constituição de 1988 não é pelas deficiências do modelo – há modelos de sistemas universais como Reino Unido e Cuba, amplamente bem considerados pela população e com indicadores de saúde melhores dos que o sistema de mercado da nação mais rica do planeta, os EUA – mas porque os governos não alocam recursos suficientes, não cumprem a legislação e porque a democracia, expressa no controle da sociedade sobre o sistema de saúde, não é respeitada”, diz o manifesto.
Outros pesquisadores como Ligia Bahia, Luis Eugenio Portela e Mário Scheffer expuseram sua opinião em relação ao caso com a publicação do artigo ‘Dilma vai acabar com o SUS’ publicado no dia 5 de março, também na Folha de S.Paulo. No artigo, estes pesquisadores relembram que, além de contribuir com impostos, os cidadãos e empregadores “serão convocados a pagar novamente por um serviço ruim, que julgam melhor que o oferecido pela rede pública, a que todos têm direito. Em nome da limitada capacidade do SUS, o que se propõe é transferir recursos públicos para fundos de investimentos privados”.
(Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio /Fiocruz)
*Publicado na edição impressa do Jornal Brasil de Fato
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