Publicado em 03/06/2013
Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 04/06/2013
A economia e seus impactos na população
Entrevista especial com Ruy Braga
Desde meados do governo Lula, as conquistas econômicas e seus reflexos na sociedade geraram um clima de otimismo que não foi quebrado nem mesmo pelo baixo crescimento dos últimos anos. Emprego e renda em alta ajudam a explicar a popularidade da gestão petista, mas, afinal, as transformações realizadas foram profundas?
As mudanças na economia brasileira a partir do início do governo Lula, como o crescimento do PIB e o aumento da participação dos serviços, representaram o que, na prática, para a população? Para o sociólogo Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP), a situação é contraditória: apesar dos efeitos positivos da elevação do emprego e da formalização, “a reprodução das bases do atual modelo de desenvolvimento impõe enormes obstáculos para a satisfação das inúmeras necessidades da classe trabalhadora brasileira”. Autor do livro A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (Boitempo, 2012), ele discute na entrevista a seguir as transformações do mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos, a participação dos sindicatos e a base política de sustentação do governo federal.
O que é o precariado brasileiro?
O precariado é o proletariado precarizado, ou seja, um grupo formado por trabalhadores que, pelo fato de não possuírem qualificações especiais, entram e saem muito rapidamente do mercado de trabalho. Além disso, devemos acrescentar os trabalhadores jovens à procura do primeiro emprego, indivíduos que estão na informalidade e desejam alcançar o emprego formal, e trabalhadores submetidos ao manejo predatório do trabalho. O precariado é composto por aquele setor da classe trabalhadora pressionado tanto pela intensificação da exploração econômica quanto pela ameaça da exclusão social. Eu retirei do conceito de proletariado precarizado os setores qualificados da classe trabalhadora, os grupos pauperizados e o chamado lumpemproletariado por entender que aquilo que caracteriza a reprodução contraditória das relações de produção capitalistas no Brasil é menos a existência de uma massa de indivíduos rejeitados pelo mercado de trabalho por invalidez, velhice ou que praticam ações ilícitas para sobreviver, e mais a ampliação dessa massa formada por trabalhadores jovens, desqualificados ou semiqualificados, sub-remunerados e inseridos em condições degradantes de trabalho.
Na prática, quais são as características desse trabalho precário?
A ideia de trabalho precário faz referência basicamente a duas dimensões. Uma é a contratual, ou seja, se há ausência de contrato, se o trabalho é temporário… Não é isso que eu enfatizo. Destaco a remuneração e as condições de trabalho. Analisando os anos 2000 no Brasil, apesar do aumento da formalização, percebe-se uma multiplicação das ocupações que pagam até 1,5 salário mínimo, em torno de R$ 1 mil. Pelo lado das condições de trabalho, tivemos um aumento do número de acidentes de trabalho, que passou de um patamar de 400 mil em 2002 para pouco mais de 700 mil atualmente. Ao mesmo tempo, houve um aumento da flexibilização do trabalho, com destaque para a flexibilidade de horários e de funções. Com o fortalecimento da estratégia empresarial de utilizar cada dia mais a terceirização da força do trabalho, aumentou a taxa de rotatividade dos trabalhadores. Ao longo de toda a década de 2000, intensificou-se aquele entra e sai de trabalhadores no mercado de trabalho tão característico de regimes fabris despóticos. Assim, associado à formalização do emprego, algo evidentemente positivo em termos de proteção trabalhista, percebemos nos anos 2000 um flagrante aumento da precarização das condições de trabalho no país.
Qual é a porcentagem desse setor na classe trabalhadora brasileira?
Seguramente estamos falando da maioria da população trabalhadora. Os dados oficiais do Censo nos dão uma ideia das dimensões desse grupo: em média, durante os dois governos Lula, foram criados anualmente 2,1 milhões de empregos formais. No entanto, 94% desse total, isto é, 2 milhões de postos pagavam até 1,5 salário mínimo. Exatamente a faixa salarial que acantona o precariado.
O trabalho doméstico entra nesse grupo?
Sem dúvida. O trabalho doméstico é uma das principais indicações da natureza resiliente da informalidade laboral brasileira. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE), entre 1999 e 2009 o número desses trabalhadores saltou de 5,5 milhões para 7,2 milhões. Mesmo que tenha havido um pequeno aumento da formalização, na cidade de São Paulo, em 2009, apenas 38% das empregadas tinham carteira de trabalho. Em todo o país, a formalização mal alcança os 30%. Ao mesmo tempo, os dados apontam para um envelhecimento dessa força de trabalho. Isso indica que os filhos e filhas dos trabalhadores domésticos estão se deslocando para outros setores, principalmente o de serviços. A fatia mais escolarizada das filhas das trabalhadoras domésticas tem buscado no telemarketing uma jornada de trabalho menor e mais previsível, capaz de garantir a elas o acesso à faculdade noturna. O grande problema dessa história é que as condições estruturais do mercado de trabalho no Brasil impedem que essa trabalhadora, filha de empregada doméstica, ascenda salarialmente, porque praticamente todos os postos que são criados pagam mais ou menos o mesmo que o telemarketing.
Mas é um fator positivo que essa nova geração esteja deixando o trabalho doméstico, não?
É claro. Nosso problema é que, apesar dos avanços decorrentes da formalização do emprego – que são muito positivos, tanto em termos de proteção social quanto das possibilidades abertas para a mobilização coletiva –, a reprodução das bases do atual modelo de desenvolvimento impõe enormes obstáculos para a satisfação das inúmeras necessidades da classe trabalhadora brasileira.
E esses avanços são fruto de ações deliberadas do governo ou do desenvolvimento próprio do capitalismo?
Em minha opinião, trata-se de uma combinação desses dois fatores. Há políticas públicas, principalmente federais – como os aumentos do salário mínimo acima da inflação, o programa Bolsa Família, o crédito consignado, etc. – que explicam parcialmente esses avanços. Além disso, destacaria duas variáveis. A primeira é que a estrutura social do país deu uma guinada na direção dos serviços. Na última década, o Brasil consolidou um modelo de desenvolvimento pós-fordista e financeirizado no qual o setor de serviços se destaca. E o assalariamento nesse setor é muito mais barato do que na indústria, por exemplo. É um modelo de desenvolvimento que acolhe milhões de pessoas, sobretudo mulheres, jovens e trabalhadores não-brancos. Naturalmente, isso é positivo. Além disso, é preciso lembrar que a dinâmica da financeirização da economia obriga o Estado a arrecadar mais a fim de continuar remunerando os credores da dívida pública. E é mais simples tributar a economia formal. Portanto, diria que há uma convergência de diferentes fatores que reforçaram a absorção pelo mercado formal desses milhões de trabalhadores.
Como você analisa a participação dos sindicatos nesse processo, especialmente considerando os seguidos aumentos reais de salário que vêm sendo obtidos mesmo depois da crise em 2008?
Em um país com o histórico de descontrole inflacionário como é o caso do Brasil, reajustes salariais são frequentes nas pautas sindicais. Não se trata de uma novidade. O que é importante destacar em relação ao atual momento do sindicalismo no país é exatamente sua fusão com o aparelho de Estado. Nos últimos anos, houve uma integração da elite da burocracia sindical aos postos de assessoramento do governo e aos fundos de pensão, com um claro efeito de alinhamento das pautas das principais centrais sindicais brasileiras com a agenda governista. O próprio movimento sindical se financeirizou. O que isso significa? Que temos um sindicalismo muito mais alinhado ao Estado, que recebe mais recursos financeiros e que se transformou em um dos principais pilares do investimento capitalista no país. Por quê? Porque os fundos controlados por sindicalistas se encontram presentes nos principais negócios brasileiros, ou seja, a poupança do trabalhador está financiando a fusão das empresas, os investimentos em infraestrutura, as obras da Copa, a prospecção de petróleo…
Qual é o efeito disso sobre o sindicalismo? A fusão da pauta sindical com um projeto de governo. Porém, isso cria tensões na base, uma vez que o regime de acumulação continua se reproduzindo de maneira despótica, endurecendo as condições de trabalho. Entrevistei uma trabalhadora de telemarketing, com oito anos na função, o que é bastante tempo em um setor como esse. Ela contava que as trabalhadoras entram no telemarketing, pegam um cartão de crédito, dão entrada em uma televisão de tela plana, compram roupas de marca… Enfim, se endividam. E têm de se matar no telemarketing vendendo cartão de crédito para pagar as dívidas que elas próprias fizeram no cartão. É interessante perceber como esse jogo vai se desenrolando. Essa trabalhadora percebe os limites desse modelo de desenvolvimento porque ela experimenta os dois lados: o do consumo e o do endividamento, que a obrigam a bater metas e ficar dependente de um regime de trabalho intenso, controlado e despótico. Em minha opinião, a consciência desses limites está se tornando mais clara. Prova disso é que, depois de 2008, tivemos um aumento ano após ano no número de greves no país, o que coloca o atual momento no mesmo patamar da atividade grevista do final dos anos 1990.
São essas as contradições que formam a subjetividade do precariado?
Por meio de um estudo de caso da indústria paulistana do call center, identifiquei a vivificação de algo que é muito usual no capitalismo semiperiférico: uma estrutura social que, em vez de produzir o consentimento à exploração econômica apoiado em concessões materiais aos trabalhadores, promove a inquietação social. Por quê? Porque, se por um lado promoveu um relativo progresso material, de outro, o capitalismo na semiperiferia se especializou em reproduzir as bases materiais do trabalho barato. E este tende a ser precarizado. Ou seja, os trabalhadores experimentam um progresso real quando transitam, por exemplo, do campo para a cidade ou do pauperismo para o mercado formal, porém, imediatamente essa conquista material mostra seus limites, e esses trabalhadores, que acabaram de viver uma experiência progressista, percebem que estão inseridos em condições de trabalho degradantes ou se veem endividados. Eles desejam o progresso, mas as promessas do modelo de desenvolvimento raramente são cumpridas.
Pela posição do Brasil na divisão internacional do trabalho…
Nos últimos dez anos, a estrutura social brasileira se especializou em lucrar no setor financeiro, na indústria da construção civil, na mineração, na indústria do petróleo e no agronegócio. São todos setores onde há uma concentração de trabalho não qualificado ou semiqualificado, o que acaba promovendo uma multiplicação de postos de trabalho que pagam mal.
E o setor de serviços?
O problema é identificar quais são os motores do atual modelo de acumulação. O setor de serviços sem dúvida é um deles. No entanto, nos últimos dez anos, a acumulação de capital no Brasil ocorreu, sobretudo, nos bancos, na mineração, no petróleo, no agronegócio e na construção civil. São setores rentáveis, até porque têm condições de ampliar extensivamente a base de sua exploração por meio da incorporação de novas áreas. Mas quem efetivamente absorveu os trabalhadores foi o setor de serviços. No entanto, isso não quer dizer que ele seja o setor mais lucrativo.
Quais são as consequências políticas desse processo? Como explicar a atual hegemonia lulista?
Eu busquei fazer uma síntese das teses de André Singer e de [Francisco] Chico de Oliveira. O Chico afirma que essa hegemonia é fundamentalmente sustentada na absorção da elite sindical pelos fundos de pensão e pelo governo. E o André diz que o lulismo se apoia no consentimento de amplos setores empobrecidos da população, isto é, o subproletariado, às políticas públicas. Por meio do conceito de hegemonia em Gramsci, fui capaz de observar a combinação do consentimento passivo das bases, seduzidas pelas políticas públicas, com o consentimento ativo das direções do movimento sindical ao projeto de governo.
No livro, argumentei que a atual hegemonia lulista resulta da articulação desses tipos distintos de consentimento. Mas, veja bem, em relação às bases, o adjetivo passivo qualifica o substantivo consentimento, e não a ação política dos trabalhadores. Em minha opinião, o precariado continua politicamente ativo, faz suas greves, porém, como não tem um projeto autônomo de poder, ele aderiu ao projeto construído pela burocracia lulista. Já o consentimento ativo das direções é muito claro. Há de fato uma fusão do movimento social ao aparelho de Estado e aos fundos de pensão. Isso se dá em diferentes esferas, desde o movimento sindical até o movimento sem terra e agora mais recentemente com o movimento sem teto, que começa a administrar investimentos em habitação popular por meio do programa “Minha Casa, Minha Vida, Entidades”.
Essa hegemonia é mais estável do que foi a hegemonia populista. A fusão dos setores populares do movimento social com o aparelho de Estado e os fundos de pensão é mais aguda do que a adesão do movimento sindical aos governos Vargas, João Goulart, etc. Contudo, isso não quer dizer que não haja conflito. Percebo sinais de certa fadiga do atual modelo de regulação nas paralisações que ocorreram, por exemplo, nas obras do PAC (Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Suape, Coperj etc.), nas greves bancárias dos últimos anos, na greve dos Correios, dos professores do ensino fundamental, nas obras da Copa e também em outras mobilizações mais localizadas, paroquiais, como a greve da construção civil em Belém e em Fortaleza, além das paralisações na indústria automobilística.
Os pacotes anunciados pelo governo neste ano para retomar o crescimento econômico podem amenizar essa fadiga? A base dela é econômica?
Uma parte importante dessa questão está relacionada ao crescimento econômico. Veja o exemplo da greve nacional bancária, liderada por entidades lulistas, basicamente, contra o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Ou seja, uma greve contra o governo. Nos Correios temos a mesma dinâmica. Obras do PAC, idem. Isso aponta para onde? Muitos sindicalistas creditam isso a uma relativa inexperiência de Dilma em negociar. Acho isso um tremendo equívoco. Não que ela seja inexperiente em negociações com sindicalistas, o problema é que o governo Dilma olha para os dados da economia, prevê crescer 2,7%, 1%, e isso reduz sua capacidade de oferecer concessões. Lula previa crescer 7,5%, e podia dar reajustes. Não é o caso agora, com uma média de 1,5% de crescimento. É menos da metade da média do governo Lula e, desse modo, ela tem menos da metade da margem de manobra em uma mesa de negociação. Isso tem impactos políticos porque os trabalhadores ficarão mais inquietos. E então aumenta a fadiga do modo de regulação. Porém, se a economia crescer conforme a previsão do governo e o mercado de trabalho continuar aquecido, é possível antever uma eleição tranquila para a Dilma em 2014. Tudo depende do comportamento da economia este ano.
*Entrevista concedida a Luís Brasilino e publicada originalmente no Le Monde Diplomatique, em 1º/05/2013.
Se você gostou, conheça mais clicando nos links:
Também entrevistaram Ruy Braga sobre o livro "A política do precariado", Eleonora de Lucena, para a Folha de S.Paulo, Valéria Nader e Gabriel Brito para o Correio da Cidadania e Márcia Junges e Graziela Wolfart para o IHU Unisinos.
*Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
*Retirado do Boitempo
**Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 04/06/2013
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