11 de março de 2014
Por Luiz Zanin - O Estado de S.Paulo
Acordamos assustados com a presença do racismo na América Latina e no Brasil. Primeiro, foi o caso de Tinga no Peru. Agora, os do juiz Márcio Chagas da Silva, no Rio Grande do Sul, e do Arouca, em Mogi-Mirim. Fui domingo à Vila Belmiro certo de que veria um desagravo em regra a Arouca. Nada. Umas palmas protocolares da torcida, uma faixa no intervalo do jogo dizendo que o racismo é inaceitável, e pronto.
Bola pra frente. Parece que existe uma consciência coletiva por aqui de que esses atos não são coisa muito séria porque fundamos uma democracia racial, imune a preconceitos e coisa e tal. Essa crença benévola tem de ser relativizada e muito. Parece mais um autoengano do que outra coisa qualquer.
Houve um caso semelhante, faz alguns anos, em 2005, quando o argentino Desábato, do Quilmes, dirigiu insultos a Grafite, que na época jogava no São Paulo. Houve escândalo, o caso foi parar na delegacia de polícia, com o argentino saindo preso do Morumbi. Não faltou quem, na época, dissesse que o delegado queria aparecer e que não era para tanto. Houve até jogadores do passado afirmando que essas coisas, no campo, eram deploráveis, mas normais, e deveriam ser resolvidas no terreno de jogo, sem necessidade de providências policiais e judiciais. Se não me falha a memória até Pelé se manifestou nesse sentido, com a propriedade de quem havia sentido na pele o mesmo que Grafite.
Entendo que os jogadores do passado pensassem dessa forma. Afinal, um certo racismo, latente muito bem disfarçado, faz parte da nossa formação morena. Não tínhamos apartheid legal, mas um sentimento de desnível de raças muito bem disfarçado e que podia comportar até certa tolerância, desde que não se passasse dos limites. Um branco bem pensante poderia considerar admirável um atleta negro, desde que este não tivesse a má ideia de namorar sua filha. Aí, não. Cada qual no seu lugar. E assim vivemos candidamente, se o termo cabe, na autoilusão benévola de que morávamos em um paraíso racial, bem diferente da África do Sul ou mesmo dos Estados Unidos. Perguntem a Paulo César Lima, o PC Caju, o quanto sofreu de discriminações por seu comportamento ousado e altivo, vestindo roupas chamativas e namorando as louras da zona sul do Rio. Era uma exceção em sua época.
Com o tempo, e muita luta, as coisas foram mudando. O apartheid sul-africano caiu, Nelson Mandela saiu da prisão, chegou ao poder e tornou-se objeto de admiração mundial. Pela primeira vez em sua história, os Estados Unidos elegeram um presidente negro que, para alegria de uns e decepção de outros, age da mesma forma que seus antecessores brancos. O mundo muda. Evolui em algumas coisas, em outras nem tanto. Hoje em dia é difícil encontrar quem se declare explicitamente racista. Isso não quer dizer que o racismo em si tenha desaparecido. Apenas que se tornou mais enrustido.
Alguns insultos, tidos como "normais" ou "coisa de jogo" nos tempos de Pelé (anos 1950-1970) agora não mais o são. É possível que fossem assimilados naquele tempo, ou revidados às escondidas, com uma cotovelada, uma entrada mais forte, dribles ou gols geniais. Hoje, com a mudança produzida no mundo, tornaram-se intoleráveis. Doem mais, exatamente porque seu caráter aberrante tornou-se mais evidente.
Fiquei muito comovido com uma entrevista com a mãe de Arouca na qual ela dizia ao filho que sempre seria assim. Era a voz conformada de uma geração anterior. Arouca por certo não pensa dessa maneira. Não pode pensar e não pode aceitar. Cabe também a nós, da crônica esportiva, que muitas vezes gastamos espaço e tempo preciosos em frivolidades, martelar em nossas mal traçadas linhas o quanto é absurdo diminuir um homem pela cor da sua pele. É crime. E os criminosos estão entre nós.
*Retirado do Estadão
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