13/11/2015
Segundo maior corte no orçamento federal e medidas como a aprovação do orçamento impositivo e a renovação da DRU colocam a área da Saúde como uma das mais afetadas pelo ajuste fiscal
Por Cátia Guimarães
Uma pesquisa realizada em setembro deste ano por encomenda do Conselho Federal de Medicina (clique aqui) mostrou que, na opinião de grande parcela dos brasileiros – 43%, a Saúde deve ser a prioridade do governo federal.
Quase no mesmo momento em que esses resultados estavam sendo divulgados, o governo mostrou uma "prioridade às avessas": foi exatamente sobre o Ministério da Saúde que recaiu a segunda maior tesourada do ajuste fiscal. Assim, em descompasso com a demanda das ruas, só em 2015 o governo cortou R$ 11,7 bilhões de um orçamento que há tempos vem sendo denunciado por profissionais e movimentos sociais da área como incapaz de suprir as necessidades de saúde da população. Talvez os usuários do SUS ainda não tenham sentido os efeitos, já que a maioria dos serviços utilizados são administrados pelos estados e, principalmente, pelos municípios. Mas quem acompanha de perto o financiamento do sistema aposta que a diminuição de oferta e mesmo a interrupção de serviços é só uma questão de tempo. E pouco tempo.
Descentralização da conta
O Ministério da Saúde garante, em nota enviada à [Revista] Poli, que o corte não vai atingir esses gastos. “O contingenciamento não recaiu nas despesas obrigatórias, que representam R$ 76,4 bilhões e se referem, principalmente, aos repasses efetuados pelo Ministério da Saúde aos estados e municípios para o desenvolvimento e fortalecimento de ações de Saúde, como atendimentos, exames, internações e também custeio de serviços estratégicos, como os programas PAB Fixo, Saúde da Família, aquisição de imunobiológicos, medicamentos, etc.”,
“Não é verdade”, afirma Áquilas Mendes, economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Ele explica que, já em 2014, mesmo antes do anúncio das medidas caracterizadas como parte do pacote de ajuste fiscal, as contas da União com os estados e municípios não fecharam. De acordo com cálculos feitos pelo economista Francisco Funcia, que é consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde, ao todo, o governo federal ficou "devendo" R$ 3,8 bilhões do repasse para estados e municípios. Isto prejudica principalmente os serviços de média e alta complexidade, que envolvem diversos tipos de cirurgia e exames, assistência aos pacientes com câncer, atendimento traumato-ortopédico, procedimentos como diálise e consulta médica em atenção especializada, entre muitos outros. Esse dinheiro só chegou aos fundos estaduais e municipais três meses depois, em março, já utilizando o orçamento deste ano. E as contas de Francisco – detalhadas em um artigo publicado no site Domingueira – mostram que esse problema só tende a crescer: segundo as estimativas, no final de 2015 deverá acontecer um novo atraso, dessa vez da ordem de R$ 5,9 bilhões, o que vai sufocar ainda mais estados e municípios e comprometer o orçamento de 2016, gerando uma verdadeira bola de neve.
Tomando como base o valor anunciado pelo Executivo na Proposta Orçamentária Anual para 2016 – que não é definitiva porque ainda está tramitando no Congresso – os cálculos de Funcia apontam que no final de 2016 chegará a R$ 16 bilhões, o que ele chama de “insuficiência”; ou seja, o dinheiro que o governo federal vai ficar "devendo" aos estados e municípios. “É um efeito em cascata. Em 2015 não vai ser possível manter o padrão dos gastos de 2014, vai continuar o atraso. Em 2016 vai faltar mais ainda. Vamos ter uma estagnação dos recursos para a atenção básica, onde já havia insuficiência. A [Estratégia de] Saúde da Família, na verdade, precisa aumentar o valor dos incentivos, mas não tem recursos. Então o município vai parar porque 30% do Saúde da Família é de transferência federal, e ele precisa desse percentual. A situação é que vai-se começar a cortar, inclusive no Saúde da Família”, aposta Áquilas, lembrando que, no âmbito do próprio governo federal, já foi anunciado o fim, por exemplo, do Programa Farmácia Popular, que não terá nenhum recurso em 2016.
Mas, pode piorar...
E o ano de 2015 trouxe uma novidade que pode piorar ainda mais o cenário. Isto porque em março foi aprovada pelo Congresso e sancionada pela Presidente da República a Emenda Constitucional 86, que instituiu o chamado orçamento impositivo. A mudança tornou mandatória a execução das emendas parlamentares, que passam a ser computadas nos gastos obrigatórios de Saúde. De acordo com os cálculos de Francisco Funcia, os recursos federais não serão suficientes para cobrir essas emendas – que, para o orçamento de 2016, totalizam pouco mais de R$ 9 bilhões; destes, mais da metade para a área da Saúde. Mas como, exatamente num ano de ajuste fiscal, o cumprimento delas se tornou obrigatório, o mais provável é que se retirem recursos de outros gastos da Saúde.
A diferença principal é que essas emendas instituem ações de Saúde isoladas, fragmentadas e muitas vezes focalizadas, como a compra de ambulâncias e realização de obras em Unidades de Saúde – ações que, embora pareçam melhorias, não necessariamente respondem às demandas de saúde locais. As emendas parlamentares são um mecanismo previsto na Constituição para que deputados e senadores possam incluir propostas individuais no projeto de Lei Orçamentária que é enviado pelo Executivo, com a clara função política de permitir que eles realizem "benefícios" nos seus locais de origem e, com isso, ganhem pontos com a sua base eleitoral.
Mas, como o ajuste fiscal não pode ser entendido apenas como corte de orçamento, seu impacto sobre os serviços de Saúde que são oferecidos nos municípios e estados pode ser muito maior. Isso porque o governo federal optou por um modelo de ajuste que freia o consumo para conter a inflação. E, como no Brasil os impostos e contribuições taxam mais o consumo e o trabalho do que a renda ou a riqueza, em momentos de recessão como o da atualidade, a arrecadação cai. Porém, o que isso tem a ver com a Saúde? É que, constitucionalmente, estados e municípios são obrigados a gastar com Saúde, respectivamente, 12% e 15% da receita adquirida por meio de impostos e transferências constitucionais e legais. No caso dos estados, o orçamento depende de três impostos: ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) e ITCMD (Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação). O que gera maior arrecadação é o ICMS, e tanto ele quanto o IPVA tendem a cair num momento de crise, em que as pessoas compram menos. O mesmo acontece nos municípios, principalmente por conta do ISS (Imposto sobre Serviços).
Desde a aprovação da Emenda Constitucional do orçamento impositivo, a participação da União no financiamento da Saúde está vinculada à Receita Corrente Líquida. E, como o economista Francisco Funcia lembra no seu artigo, isso significa que uma provável queda de arrecadação nos tributos federais – como o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – também vai impactar os recursos com os quais estados e municípios mantêm as ações e serviços de Saúde para a população.
O antes do ajuste: medidas estruturais
Nesse ponto a discussão sobre o ajuste fiscal se confunde com o debate mais geral sobre financiamento da Saúde e o papel da União na repartição dos custos. Isso porque, na verdade, o ajuste não se limita ao pacote de medidas anunciadas pelo governo em setembro, mas inclui também ações estruturais que estão sendo pautadas ou que já estão em curso. A aprovação da EC 86, em março deste ano, é um exemplo disso.
Durante muitos anos, profissionais e militantes do SUS lutaram para criar uma lei que especificasse o percentual que cada ente federado deveria investir no SUS, ampliando a participação do governo federal (União). A aprovação dessa Lei Complementar (n. 141, que regulamenta a EC 29) em 2012, no entanto, foi uma derrota, porque o texto aprovado pelo Congresso não alterou o cálculo dos recursos a serem aplicados pela União. Para reagir a isso, foi organizado o movimento ‘Saúde + 10’, que se concretizou num Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLP 321/2013), que estabelecia que o governo federal deveria aplicar em saúde 10% da sua Receita Corrente Bruta – até então, esse investimento estava vinculado à variação do Produto Interno Bruto (PIB). “Esse percentual não foi definido aleatoriamente, foi baseado numa participação dos gastos da União em saúde que já existiu, lá em 1995”, explica Áquilas Mendes que, no entanto, questiona se essa era a melhor fórmula exatamente porque, em tempos de crise e ajuste como os que estamos vivendo, a Receita também tende a diminuir.
O fato é que o que era ruim ficou ainda pior: este ano, a Emenda do orçamento impositivo alterou a Lei 141/2012, estabelecendo que a União deve aplicar em Saúde um percentual crescente da sua Receita Corrente Líquida (que é sempre menor do que a receita bruta), começando com 13,2% em 2014 e chegando ao máximo de 15% em 2018. Para se ter uma ideia do que isso significa, 10% da Receita Corrente Bruta, que era a reivindicação do movimento sanitário para começar já, corresponde a 18,7% da Receita Corrente Líquida. De acordo com Mendes, o resultado é que em 2014 o governo federal aplicou em Saúde menos do que em 2009.
No entanto, o Ministério da Saúde – que recusou a dar entrevista ou responder às perguntas enviadas pela Poli, limitando-se a enviar uma nota – afirma que “tem assegurado investimento crescente para a saúde pública em todo o país, cumprindo rigorosamente o que determina a Constituição”. Segundo o texto, “na última década, o desembolso em ações e serviços públicos de saúde quase triplicou, passando de R$ 32,7 bilhões em 2004 para R$ 92,6 bilhões em 2014”. O problema é que, com as mudanças ocorridas nos últimos anos, a Constituição tem ‘decrescido’ o gasto obrigatório da União com Saúde. Além disso, segundo Áquilas Mendes, esses cálculos não são reais. “Quando diz que o orçamento triplicou, o Ministério trabalha com valores correntes. Não pode. Em 2004, com R$ 100 você fazia compras para um mês. Em 2014, não dá nem para uma semana”, compara, mostrando que o governo não está levando em conta a inflação. Ele destaca ainda que o governo sempre parte de 2003 ou 2004 para traçar esse histórico de investimento crescente quando, em comparação com os anos anteriores, o investimento caiu já em 2003.
Faltam recursos?
Na mesma nota, o Ministério da Saúde reconhece que “os recursos não são suficientes para garantir a sustentabilidade do sistema público de saúde, de forma permanente, amparado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade”. Por isso, diz, “o Ministério defende o debate junto com toda a sociedade para viabilizar novas fontes de financiamento para a saúde”. Gastão Wagner, sanitarista e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), analisa: “Eu acho que o mais grave, do ponto de vista político, de valores, é que o ajuste vem com a ideia de que a responsabilidade do desequilíbrio fiscal e orçamentário é das políticas sociais, como saúde, educação e aposentadoria. E quando algum governante admite que o SUS pode precisar de mais recursos, fala que isso só é possível com uma nova fonte”.
Embora não nomeie, a “nova fonte” defendida pelo governo federal é a retomada da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que existiu entre 1997 e 2007 especificamente para financiar a Saúde. Mas, tal como não se pode tratar o ajuste fiscal e os cortes orçamentários como resposta natural à crise, não é consenso que a carência de investimentos na Saúde Pública se justifique pela falta de recursos.
Primeiro é preciso esclarecer os dados que costumam ser utilizados para tratar do financiamento da Saúde. É comum se ler nos jornais que o Brasil investe 8% do PIB em Saúde, o que nos colocaria num bom patamar, já que essa é a média de gasto dos países com sistema universal (nos quais todos, indistintamente, têm direito a qualquer ação de saúde). O que se costuma esquecer de dizer é que, desse total, somando o investimento de União, estados e municípios, apenas 3,9% do PIB vai para a saúde pública; os outros 4,2% referem-se às despesas privadas de saúde que acontecem no país, incluindo gasto com consultas, planos de saúde e medicamentos.
Na mesma Constituição Federal que criou o SUS, definindo saúde como direito de todos e dever do Estado, os recursos desse setor foram vinculados ao orçamento da Seguridade Social – que inclui também previdência e assistência social. Aqui, aliás, entra em cena um outro mito, muito alardeado nos jornais especialmente neste momento de ajuste: o de que a previdência brasileira é deficitária e, por isso, é urgente uma reforma que diminua os gastos. Vamos aos números: contabilizadas todas as fontes de receita, o orçamento da seguridade social totalizou R$ 686 bilhões em 2014; somadas, as despesas com Saúde, Previdência e Assistência Social, chegaram a pouco mais de R$ 632 bilhões. O resultado dessa simples conta de subtrair é que toda a seguridade social teve um superávit de R$ 53,89 bilhões. Por que falta dinheiro, então? Porque, desde 1994, uma mudança constitucional que vem sendo constantemente atualizada instituiu o que hoje se chama Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo que permite que o governo federal desvie 20% desse orçamento para outras despesas. Em 2014, isso significou a retirada de mais de R$ 63 bilhões – e, assim, como num passe de mágica, um saldo de mais de R$ 50 bilhões se transformou num déficit de quase R$ 10 bilhões.
Na Proposta de Emenda Constitucional que fez a última renovação da DRU, em 2011, a justificativa dada pelo governo era de que “a estrutura orçamentária e fiscal brasileira possui elevado volume de despesas obrigatórias, como as relativas a pessoal e a benefícios previdenciários”, e que isso “reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, e prejudica a poupança para promover a redução da dívida pública”. Portanto, os recursos para Saúde, Previdência e Assistência Social existem. O problema é que eles são deslocados para outro lugar – e não por qualquer obrigação legal, mas por uma opção dos governos que, conforme fica claro no texto, elegem outras prioridades de políticas, além do pagamento de uma dívida que só faz crescer em vez de diminuir. Dados sistematizados pelo economista Áquilas Mendes mostram, por exemplo, que enquanto o investimento em Saúde ficou estagnado na média de 1,7% do PIB desde 1995 – tendo atingido o máximo de 1,8% em 2009 e 2012 –, o gasto com os juros da dívida teve grande flutuação, chegando a 9,3% em 2003 e fechando 2014 em 5,6% do PIB. De acordo com ele, desde a sua implantação, a DRU provocou a perda de R$ 704,2 bilhões de recursos originários da Seguridade Social.
Como parte das medidas consideradas estruturantes do ajuste fiscal, já está tramitando no Congresso a PEC 87/2015, que além de renovar a DRU até 2023, aumenta o limite da desvinculação de 20% para 30%. “Eu defendo que não tem que gastar mais do que tem, só tem que rever o padrão de gasto público. Está-se investindo para os mais ricos, com a justificativa de que isso aceleraria o crescimento econômico, e isso não tem ocorrido”, diz Gastão Wagner. E completa: “Esse é um ponto que a gente está perdendo na discussão do ajuste. Fica no horizonte do povo que o ensino público e o SUS não podem receber mais nenhum recurso, porque isso seria irresponsabilidade econômica e administrativa”.
Outra forma de "desvio" de recursos do Estado que deveriam financiar a Saúde Pública acontece por meio da renúncia fiscal, um mecanismo em que o governo diminui ou mesmo abre mão de receber alguns impostos para incentivar um determinado ramo da economia. No caso da Saúde, esse artifício tem sido amplamente usado, por exemplo, para fomentar a compra de planos de saúde ou fortalecer hospitais privados (inclusive muitos de luxo, como o Albert Einstein e o Sírio Libanês), contemplados com o selo de "filantrópicos". Somadas todas as formas de desoneração da área da Saúde, tanto de pessoa física (por meio do Imposto de Renda) quanto de empresas, R$ 18,3 bilhões deixaram de entrar nos cofres do governo federal em 2012 (últimos dados disponíveis), de acordo com estudos do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Ocké-Reis. Como se pode ver, só esse valor cobriria todo o corte de orçamento que o Ministério da Saúde sofreu, e ainda sobraria dinheiro.
Quem não acompanhou a luta pela criação de um sistema universal de saúde no Brasil e se preocupa com o ajuste fiscal na Saúde de forma mais pragmática, talvez ache que a estratégia de se financiar com recursos públicos uma oferta de saúde em instituições privadas pode ser um caminho interessante para dar conta das necessidades da população. Toda a experiência exitosa dos países nos quais o movimento sanitário se inspirou para defender o SUS já seria suficiente para desmistificar essa ideia de que a saúde pode ser comprada como um serviço no mercado privado. Mas, nem é preciso ir tão longe: para desanimar os mais esperançosos, basta dar uma olhada nos resultados da pesquisa de saúde citada na abertura desta matéria. Na época, a manchete dos jornais chamava atenção principalmente para o fato de que 93% dos entrevistados estão “insatisfeitos” com a saúde e que 60% deles avaliam como ruim ou péssima a Saúde no Brasil. Um olhar mais rigoroso sobre os dados, no entanto, mostra que esse percentual diminui para 54% quando se trata especificamente do SUS, o que, ao contrário de todo o discurso que elogia o mercado, indica uma insatisfação maior com a saúde privada. Na outra ponta, a pesquisa mostra que apenas 6% dos brasileiros classificam a Saúde brasileira como boa ou excelente, um número que dobra (12%) quando a avaliação é especificamente sobre o sistema público. Não é por acaso que, entre aqueles que lutam pelo fortalecimento do SUS, soa cada vez mais alto o aviso de que "Saúde não é mercadoria".
*A partir do EPSJV
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